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Prosa 1

A Casa


    A casa não pode parar, ela não para. A casa tem horários, tem café, tem restos de bolacha no sofá; a máquina de lavar quebra, e a casa não para, ela é assim, constante, resiliente, inevitável. Os sapatos não servem mais. O leite se derramou todo no corredor – alguém caiu, bateu a cabeça, na pressa com um pano seco secou-se o leite, no dia seguinte um cheiro pairava no ar porque é assim a casa, ela não te deixa deixá-la para trás, ela te demanda. Te demanda a casa e ao mesmo tempo segue a criança chorando o galo na testa. Prateleiras vazias na cozinha, lixeiras cheias, camas desfeitas. Acabou a mistura, de novo, sempre. Sempre um reparo por fazer, sempre.

 

    Com os lençóis lavados e pendurados o varal tapa a claridade da janela, e a cozinha se estende numa escuridão às 10 da manhã; entramos na cozinha com os pés crepusculares - mas que fazer, é preciso lavar os lençóis. De vez em quando tudo se congela na casa – subitamente organizado e em seus lugares itens e apetrechos objetos e talheres. E por alguns minutos pode-se ter a sensação de habitar a casa alheia. Estranhos vivem melhor que nós. Suas roupas passadas, perfumadas, seu quarto isento de ocupações infantis e instalações artísticas precoces. Seus filhos bem penteados, sem cáries, em escola de elite. Não sei, não sei. Os estranhos vivem melhor que nós, em suas casas empalidecidas em tons pastel e o sofá que se mantém branco, ninguém sabe como. Entramos na cozinha com pés crepusculares e com cuidado, alertas, como se a qualquer momento pudéssemos com um gesto interromper a noite. De volta à sala ficamos confusas com as janelas abertas, ensandecidas, a quase existência de um pátio suspenso entre nosso apartamento e o abismo.

 

    Quando a casa está em ordem sentimos os pés no chão em alguma dimensão sem objetos em excesso; sem ruídos; sem um ranço persistente no ar, de coisas por fazer, que conclamam o corpo e a atenção – mas a casa é implacável. A ordem é uma miragem, logo volta-se à vertigem.

 

    Dentro da geladeira as coisas ainda seguem seu curso – algumas, resistentes, podem criar raízes, brotar – a vida surge onde subestimamos: uma fina capa de mofo no tomate cereja que caiu no fundo da prateleira. Às vezes sinto que cada pedaço da minha casa pode testemunhar contra mim. Me fazer de refém, talvez. Ou pode pedir para se emancipar de mim. Mas sem mim haveria ainda casa?

Pergunto, pensando que todo lugar onde minha avó viveu tem o mesmo cheiro. Um cheiro fresco de tabaco misturado com sabão – uma coisa que toma forma mesmo e adere às paredes, aos móveis, ao interior dos armários. Então me pergunto quem veio primeiro afinal.

 

 

    No sítio: o ar estalava. Nos quartos as paredes eram mais frias – quadros sinistros que habitavam minha infância – como na sala de jantar em outra casa, ainda, e depois: depois da morte, quando ela precisou sair, minha avó precisou sair, pois o fantasma estava ali (em cima, na biblioteca, deitada no sofá, às vezes com dor, às vezes sorrindo, assistindo aos mesmos programas de fofocas e reprises – só via filme dublado – uma mania – a garrafa pet com o líquido de um curandeiro – um paladar estranhamente pendente às vísceras bovinas, no fim da vida – o último natal, sentada em sua cadeira, o pescoço já inclinado, mas ela estava ali, enfim, sempre foi nosso lugar; o lugar de todas nós; digo sim todas, uma família essencialmente de mulheres) ela precisou se mudar, e então, como um acordo entre ela e os tijolos, entre ela e o concreto, entre ela e a terra – pois minha avó é e sempre foi terra, terra fértil de onde todos partimos e para que voltamos incessantemente – o novo lugar permaneceu com o mesmo cheiro.

 

    O mesmo cheiro. Então entramos como entrávamos antes, atravessamos de alguma maneira a soleira da mesma porta, o mesmo rádio de pilha, as mesmas palavras cruzadas, o queijo que lá se guarda fora da geladeira, a mesma cerveja em promoção, o mesmo assado no forno. Ela não sabe, mas o fantasma se mudou junto.

 

    Eu me pergunto se sou suficientemente fértil, se sou suficientemente mulher para integrar esta linhagem. Mas outro dia flagrei meu rosto de perfil num ângulo insuspeito no espelho, e vi: minha avó. Então talvez, sim. Talvez. Quando enfio as duas mãos na farinha. E de repente sei o que fazer. Talvez. Quando descalço os sapatos. Quando dou banho nas meninas. Quando me deito. Quando olho para o homem e não quero sê-lo em nenhum momento. Quando levanto antes das 5 no dia seguinte com a expectativa de a casa me perdoar um pouco, só um pouco, e ela não perdoa, ainda assim me levanto todos os dias com a mesma esperança. Quando penso que queria ser mais leve, mas permaneço grave, então me certifico de que sou, sim, continuidade. Apesar de querer ser outra coisa. Permaneço grave. Gravíssima eu sou.

 

 

    Ou: no meu inegável parentesco com a madeira. Ou nas pernas que quando fincam na terra escutam um chamado longínquo. Ou: na habilidade de medir no olho quantidades de ingredientes. Ou ainda. Na intimidade com traças, bichos de comida, carunchos, infestações domésticas. Ou: na potência em cuidar quando desamparada. Ou: na infalibilidade dos dias. E na minha, por consequência. Na superação em tocar a carne crua, morta, e tirar de dentro o que não serve, às 6 da manhã, na superação.

 

    Mesmo no dia mais frio eu estive lá, e a casa esteve a me chamar. E mesmo com a dor mais profunda e a sensação de que não seria possível, ainda foi; a casa me impediu de sucumbir. A casa ergue em mim o esqueleto necessário para cumprir os dias. Dentro e fora da casa. Sei que se eu cair na sarjeta, empurrada finalmente por todos meus vícios e cansaços, a casa desmorona no mesmo instante – vira pó e lá se vão copos, xícaras, o liquidificador, veja que até mesmo a adega refrigerada que não usamos mais vai embora junto com bichos de pelúcia e uma animada turma de nenéns de borracha. Se eu cair, sugada então por e para tudo que há de rasteiro e decadente, a casa terá de ser outra então, e isso não, não é me sentir mais importante nessa história – não é me sentir mais importante nessa história – mas saber exatamente o lugar que ocupo há milênios, há mais tempo ainda. Não escolhi mas não recusei.

 

    Querem que não haja mais casa, mas a casa é a avó. Podem tirar a casa, um pedaço de chão, não importa. A gente ergue do pó. A gente ergue de ossos. A gente cultua as ossadas. A gente pede permissão às ossadas para reconstruir. A casa assente. Ela sempre deixa. Os mortos permitem. Os mortos ajudam, a casa segue. Ela quer vida. Eles querem minha vida, que seja melhor por eles. Ela quer o leite derramado, a roupa fora do lugar, ela quer, eu aquiesço, não tenho muito mais que fazer comigo mesma desde que brotei mais pra além de mim, escapei à minha exiguidade, algo para ultrapassar minha mediocridade, sou egoísta neste nível. De vez em quando confesso que tive filhas pra me salvar, mas me assusto com o horror da frase e calo. 

 

    E sei que só há casa onde está minha mãe, também, por isso não me preocupo. De vez em quando até sinto falta, assim, quando lembro. Mas tudo secou depois que ela saiu de lá. Os objetos subitamente minerais; aliás, não minerais, mas brasas e cinzas. Não cintilavam mais ao passar por eles – saiu o sentido, saiu toda a voz da boca. Não sobrou nada, terra devastada. O pé de manjericão cresce ainda mas perdeu cheiro, perdeu gosto, perdeu verde, virou assim uma imitação de si mesmo. A casa sem ela são sombras. Ele cultua sombras e delas vive. Ele ergueu todo um monumento às sombras. As sombras o orientam: criam novos caminhos em sua cabeça, novas lembranças onde estava a minha dor – ele colocou assim uma pausa, sem inquietação; não existe narrativa cujo protagonismo ele não ocupe, e aqui, comigo, sei bem, não existe casa possível onde ele esconde de mim o ar, como escondeu tantos anos, e segue. No fim aquela casa morta só se aviva nas lembranças. Ela se ergue hoje gigantesca e sombria, eu consigo vê-la como a viam outros que não sabiam do encanto de seu interior, o coração da casa, o coração de minha mãe. Hoje a casa se ergue altíssima monstruosidade, e não dou conta de ver seu topo; ela não é para mim; de algum modo sempre será minha, mas não tenho mais meu pertencimento ali, desenraizei-me, vou junto onde estão as pernas de minha mãe, vou junto em cada passo arrastado – ela foi, voltou, retornou, saiu, ficou, talvez, agora não tem mais volta: posso descansar meus pés nessas pegadas e refazer o rastro deixando um pouco mais de cor. A casa sobrevive apenas naquele persistente batom esquecido no fundo do armário, coisas assim, com um potencial para o sentimentalismo.

 

    Dessas coisas emana algo como um sopro de vida. Um apego. Um proto-coração.

 

    Mas isso tudo me faz seguir com um senso maior de dever. De função? Destino? Pertencimento? É minha obrigação? Sou eu. Preciso estar junto à casa pulsante ela precisa de mim. Não podemos parar. A casa não para. Ela reclama. Que eu esteja, e que esteja além de mim, além do que julguei poder estar, ela demanda: esteja, à altura, esteja, sinto que chegarei lá, eu, a casa, estaremos, inexoráveis, espero, seguiremos. A casa não para

 
 

Gabriela Ruggiero Nor

É mestre e doutora em Literatura

pela Universidade de São Paulo. É autora do livro de poemas "Incidente ofídico" (Urutau, 2021), além de ter publicado artigos acadêmicos e contos em coletâneas e revistas. Trabalha principalmente com literatura e psicanálise, facilitando oficinas e cursos de escrita. 

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