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Prosa 1

Um lampejo epifânico
(Post Coronavírus)

     Falar sobre a pandemia, um tema tão abrangente quanto sua nocividade sem limites, carrega uma carga de dificuldade para aquele que aceita o desafio e fica meditando para saber qual ou quais aspectos que serão abordados no texto. Quanto mais amplo o tema - constatação errônea se considerada vantajosa - mais o autor tem que delimitar seu foco, acomodá-lo com toda segurança e fazer com que as paralelas corram para ele. Conseguir encontrá-lo é como ter a sua disposição a tábua de salvação após soçobrar em alto mar.  Agarro-me a ele, portanto, com todas as forças. É a regra.

     Assim é que - expressão que denota a segurança do autor em ter encontrado seu foco - vislumbro um assunto observacional que me chamou a atenção. Justamente naquele período em que o pensamento fica absorto à espera de algum acontecimento. Pelo que constatei, e a corrente mundial segue a mesma esteira, as pessoas já não serão as mesmas após a pandemia, embora o mundo continue com seu movimento normal. Mas ele é somente o palco, um espaço físico. Esta mudança repentina, tão séria e inesperada, em razão de uma guinada fora de qualquer previsibilidade, ao que tudo indica, apesar de todo sofrimento que afligiu, vai pender para o lado bom.  E aí que está meu achado, meu momento de criação, meu lampejo de inspiração que foi captado de cuidadosas observações, num legítimo processo epifânico de Clarice Lispector. 

     Quando se fala em pandemia a conversa se torna universal, assim como todas as pessoas passam a pertencer a uma grei única e, cada uma no seu isolacionismo, vai buscar novos caminhos. Sua casa passa a ser seu cosmos. É como se fosse uma central emitindo o pensamento da consciência comunitária. O procedimento inicial é igual para todos: as pessoas são retiradas da sua convivência normal e isoladas para, na sequência, iniciarem a hibernação em busca de seu espírito crítico. A resposta, que conta com adesão da maioria, é no sentido de que a vida precisava de alguns reparos. Não que fosse inadequada, mas a desagregação de cada um - e aqui sem qualquer culpa do coronavírus já que anterior a ele - foi aumentando e distanciando cada vez mais as pessoas. 

     E agora, por incrível que pareça, o isolamento pede a participação comunitária. Acabou a brincadeira de esconde-esconde. Agora é mãos dadas, olhos nos olhos, cara a cara. Intimidade extremada. Machado de Assis, em seu romance Quincas Borba, recomendou mais. “A expressão: conversar com os seus botões, parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções.”

     Aí é que me localizo e me dou conta da importância do espaço que habito. Quero encontrar o outro, falar da ausência e da distância. Olho para fora e vejo o mundo paralisado, como se uma engrenagem houvesse se soltado. Olho para dentro e dou de cara com um mundo estranho e conturbado, calibrado por sentimentos detonados por mensagens sem parâmetros por parte da mídia e do meu estreito mundo de comunicação. Ninguém entende nada. Verdadeira Torre de Babel. E nesta louca incursão, quem sabe, encontro a minha verdade e posso reconstruir meu interior, colocar cada coisa em seu lugar e tudo em seu tempo. 

     Diante desta quase paranoica sensação de viver sem saber como viver uma vida enviesada e sem soluções aparentes, eu me instalo definitivamente como posseiro do meu interior e passo a quixotear comigo mesmo. É como um morrer fora do tempo e sair flutuando nas pesadas nuvens que cobrem o nebuloso céu. A única certeza é que a humanidade foi aturdida pelas tocaias e ciladas de um insipiente e indesejado vírus.

     Perdido nos porões das minhas memórias, nem sei por onde começar a faxina, mas tenho consciência que nada pode ser jogado por baixo do tapete. É hora de devassar meu interior, vasculhar todos os pontos, retirar o pó que grassa sobre os pesados móveis, onde estão guardadas as lembranças, as desejadas e as indesejadas, e pinçar, no mais fundo, os invasores que lá habitam sem autorização, num verdadeiro processo de despejo coletivo. Como se fosse uma lavagem da alma, na mesma intenção que move as baianas nas escadarias. Assim consigo expurgar os fantasmas que, como ébrios, deambulam com insistência pelas minhas estreitas veredas, criando um verdadeiro labirinto de dúvidas e incertezas.

     Vou, também, ajustar os ponteiros do meu emocional e racional. Estabelecer regras fixas para dividir o terreno de cada um, sem invasão. Apesar de os dois habitarem o mesmo espaço, terão tarefas distintas. O emocional passará por uma reforma integral cujos cacos disformes serão encaminhados para restauração. Uma nova estrutura será edificada, uma casa nova renascerá tendo como suporte uma sensibilidade que floresça sem provocação artificial, como foi direcionada pelo mundo digitalizado. O racional continuará sua tarefa, menos ridículo e mais sábio, calibrado pela precisão do pensamento ponderado e inteligente. Afinal, sou um homem emprestado para o mundo, mas dentro do meu cosmos, eu me pertenço.  

     Feita a limpeza necessária nos desvãos de minhas memórias, vou emergir dos escombros, explorar meus sonhos, não como castelos utópicos que o passado sepultou, mas sim como promessas fertilizadas pela esperança, ajustar minhas balizas corretamente apontadas para a verdadeira mudança. O tempo que passou serviu de aprendizado e daqui para a frente cabe a mim fazer as podas de algumas distorções, sem transformar o mundo num clipe triste de uma crônica do coronavírus.

     Casa nova em um mundo repetitivo. Apesar de constatar que os anos correram rapidamente, tenho tempo suficiente para procurar ver as boas coisas que a vida oferece com mais vagar. Vou colocar no meu espírito a tonalidade própria da minha mudança, temperando-a com moderação, harmonia e amor neste novo normal que se avizinha.

     São estas as propostas calcadas em um lampejo epifânico que ofereço para a humanidade. O oikos não é representativo unicamente de lar, domicílio, casa. Vai muito além. É o local apropriado para o exercício do nosce de ipsum, consistente no processo de arrumação e amadurecimento interno para que a pessoa possa se apresentar melhor perante o mundo. Tanto é que oikos é anterior ao surgimento da pólis.

 
 

Eudes Quintino de Oliveira Júnior

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