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Prosa 2

Tardes Vazias

    Sentada no sofá da sala com minha xícara de café, sinto uma brisa no rosto, acho que isso é vento de outono. Nunca tinha reparado nisso, eu é que estou sempre ventando. Lá fora, uma música. De certo, alguma que detesto. Ah não, é a do gás. É de manhã, mas as crianças já gritam. Gritam muito, me esforço para ouvir a música, a do gás. Não param de gritar. É preciso arrastar meus chinelos, levar minha blusa encardida acompanhada da calça manchada de cloro lá para o quintal. Grito sobre grito, grito mais alto. O vizinho grita, ninguém ouve nada. Mas o silêncio enfim se faz. O gás já passou. 

    Quando eu era menina, essa coisa de música do gás era novidade. O tan tan tan, taranran tan tan invadia o silêncio da tarde interminável de sol, muito calor e céu azul. Não tinha música em casa, ninguém gostava, não tinha ninguém. Não via a hora de sair dali, daquela cidade, daquela tarde quente, pegar carona com a música e dançar o mundo. Esse mundo que não cabia em mim, que precisava sair dançando nas sapatilhas já tão gastas. Preciso pedir o meu remédio na farmácia, nunca atende, faz uma semana que acabou.  

    Camas arrumadas, vou estender a roupa que eu lavei à noite no varal. Tenho reunião online às 14:00, disseram que é uma emergência, que será breve, pediram desculpas. Tudo agora é emergência. Desculpa de que? Palavra vazia. Tão vazia quanto gratidão. Ficam usando e da gente abusando. Tenho que tirar as crianças do silêncio, deixar para a hora da minha reunião.  

    -­‐ Chega de TV, gente. Podem brincar na caixa de areia.  

    Vão sujar a casa inteira, mas há 130 e-mails não lidos. Não saímos nunca do luto. Nem sei mais o que dizer por e-mail. Por que será que gostam de responder com cópia para todos? Se pudéssemos ir ao velório, colocariam um alto-falante quando fossem manifestar os pêsames? Ficam lotando a minha caixa de e-mail, me sinto culpada agora.  

    Minha avó vacinou! Antes éramos só eu e ela e agora nem sei mais dela… Que bom que ela me mandou esse e-mail! Ai, vó, pensei que nunca mais fosse te ver. Tomara que eu não morra… Não entendi porque a segunda dose será só em agosto. Preciso procurar saber disso hoje à noite. Minha amiga me disse que lá na Inglaterra quiseram fazer isso e o governo foi barrado. Quem é que barra governo, será? Bem, essa minha amiga também já foi vacinada! A pessoa mais jovem vacinada que eu conheço, 35 anos! Mas isso foi lá na Inglaterra. Na escola também falaram que a segunda dose vai demorar, que saiu um estudo. Agora toca achar a fonte desse estudo… tanta mentira… ainda bem que eu leio bem em inglês. Vou perguntar para minha amiga. Lá as coisas parecem ser mais sérias., barram até o governo. Lembrei agora do Brexit. Deixa para lá…  

    -­‐ Não acredito que vocês estão fazendo essa bagunça com água e areia no quintal! Tenho que fazer almoço, como vou dar conta de lavar o quintal agora? Vocês é que vão lavar.  

    Vou me arrepender disso. 

    Trocando de blusa, tenho aula online. Não posso esquecer de lavar minhas roupas no final de semana. Nossa, meu cabelo… envelheci 10 anos em um. 

    -­‐ Good morning, my dear students. Open your cameras, please?  

    Parecem zumbis, coitados.  Nem vou mandar o “how are you doing?” Vou seguir direto para a “crazy dance”. Quando eles dançam, o sangue circula, a aula flui. Assim, também, eles se divertem.  

    -­‐ Let’s go, people! 

    Eu, Christiane F, doutora em filosofia pela University of British Columbia, fazendo a “crazy dance” em aula on-line sozinha no quarto do meu filho.  Nossa, que p. é essa? Tem alguém atrás do Pedro me filmando fazendo a “crazy dance”!  

    -­‐ Pedro, who is home with you?  

    -­‐ Que, psora?  

    -­‐ Quem está aí com você? 

    -­‐ Não sei… ah, minha mãe. 

    A f.d.p. saiu da sala dando risada. Semana passada, eu vi no FB um caso de uma professora que teve parte da sua aula manipulada e divulgada na internet fora de contexto.  Não sei se isso é linchamento virtual ou cancelamento. Talvez os dois? Estou passando mal… keep calm and carry on é o carai. Eu, Christiane F., palhaça, linchada e cancelada. Terminei minhas aulas tremendo. O feijão queimou. 

    Fui colocar o lixo na rua. Esqueci minha máscara. Minha vizinha de cima está há uma semana internada. Ainda bem que não encontrei ninguém. O marido dela disse no grupo do bairro que foi a funcionária. Ela tem cinco filhos, a funcionária. Pegava ônibus para chegar aqui. Esse povo anda sem máscara de bandeira verde-amarela e a pobre funcionária é quem leva a culpa… Nunca mais a vi. Preciso avisar o vizinho de baixo, faz um ano que só nos comunicamos por mensagem. Ele é sozinho, às vezes acho que morreu porque não escuto nada de lá, mas daí é só a gritaria aqui começar que ele aparece. Tem sindo assim até agora. Acho que ele odeia meus filhos.  

    O celular está tocando. Ou é a Vivo ou é a Morte. Ninguém liga mais, só mensagem. Era a professora do meu filho. Ele não entrou na aula on-line enquanto eu dava aula. O que eu vou dizer? “Sorry, I was doing the crazy dance?!” Que vergonha dela, também tem filhos, mas segue magra e pontual, diz que tem uma “rede de apoio”. Oi?! “I see dead people”. Não estou mesmo dando conta... Mas agora tenho que fingir de morta porque tenho reunião. Se meu filho souber que eu sei, não vou poder justificar assistir TV. Se ele ficar de castigo, vai aprontar com a irmã. Não posso faltar da reuniãobreve-de-emergência-desculpa-gratidão. Sigo em negação então. Hora do silêncio. 

    Essa reunião não acaba, os pais querem mais aulas presenciais já que os professores podem vacinar. A escola está discutindo formas de driblar as normas do governo para atender aos pais. O governo já deixou a desculpa pronta, chama-se “reforço”.  Quem é que pode vacinar, será? Acho que a Tânia já tem uns 47, ela deve poder. O Sérgio tem, certeza! Por que será que estamos aqui há duas horas discutindo isso se no máximo duas pessoas nessa escola podem ser vacinadas? Será que esses pais dariam conta de barrar um governo? Que nada, eles é que elegeram esse que a gente tem. 

    Já faz meia-hora que o filme terminou. Tenho que cair, se não, verão o caos. Uma vez, logo no início da pandemia, eu tive uma dessas reuiniões on-line, ainda sem desculpa nem gratidão, e as crianças estavam impossíveis. Não estavam ainda acostumadas ao tédio e à tristeza das tardes intermináveis fechadas em casa. Por isso, eu pedi a palavra para pedir desculpas e explicar. O diretor, homem, me disse que eu poderia ficar tranquila, que ele também estava passando por isso, que sabia como era com crianças. Pensei comigo: aham. Ele se separou depois do Natal. Caí. 

    Estou exausta. Poxa, não fiz nada hoje com as crianças. Tenho que preparar minha aula da noite. Acho que dou conta de puxar da memória. 

    -­‐ Vamos fazer um bolo juntos, gente?  

    Bolo de pacote feito, cozinha arrumada, crianças açucaradas, mais animadas. Agora vem a sequência: banho de um, briga, banho da outra, briga, janta dos dois, briga, briga, história, oração, briga, boa noite, te amo mamãe, beijinho. Levanta um sem sono, briga, levanta outra sem sono, briga, grito, grito, choro, grito, desculpa mamãe, abraço. Tenho 15 minutos para tomar banho, achar uma blusa que ainda sirva, comer uma banana e começar a aula. Vou passar a aula mentalmente no banho. Puts, não tem mais fruta.   

    Vixe, hoje é quarta, confundi as aulas. Tenho aula com a turma chata que não abre a câmera nem esboça reação mas não hesita em reclamar que não tem tempo para “conversação” na avaliação institucional do final do semestre. A aula é sobre sustentabilidade. Vou ter que improvisar com um “pros and cons” sobre as políticas do atual ministro do meio-ambiente. Achei um artigo do New York Times. Já deu debate. Nossa, ainda bem que não estamos presencialmente em aula, esse povo está louco, teriam saído no braço. Que horror! Está mais difícil dar aula para adultos do que para crianças nestes tempos. Que gente mais sem empatia. Taí outra palavra vazia dessa pandemia. Quero ver reclamarem de conversação agora. Não posso deixar de preparar minha próxima aula, vou deixar um alarme, com grito ou sem, tenho que conseguir um tempo para isso. Não posso perder esse emprego.  

    Ainda tenho mais uma aula. Por que alguém quer fazer aula às 21h? Quero chorar de tanto cansaço. Corro para pegar água, que fome! Será que ainda tem aquele chocolate? Queria pedir uma pizza, mas é melhor não gastar. Vou improvisar, acabou o gás. Deixa para lá, finalmente posso me deitar! A cama está cheia de areia. Tenho que pedir gás amanhã. Quero sonhar com minhas tardes na infância, quando o presente era ruim, mas o futuro existia. Pobres crianças. Choro encolhida sozinha. O Caco segue entubado. Até quando, meu Deus?  

 
 

Natália Barcellos

É professora e pesquisadora do

departamento de Letras

Modernas da UNESP. Doutora em

Literatura pela Universidade

Livre de Berlim

Instagram:

@leitura_costura_e_jardim

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