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Prosa 2

Setenta vidas,
setenta anos

        Por volta dos meus seis ou sete anos, ainda lembro vividamente de como mãe Maria me dava a benção e me benzia com a ponta dos dedos ressecados de uma caboquinha preta retinta da cor da noite mais escura e serena com seus mais de setenta anos. Mãe Maria era uma árvore, era forte, funda. Eu não sei mensurar exatamente de tudo que ela tinha o tudo que ela era. Eu gostava de ouvir suas histórias, ver aquele fole antigo pendurado na parede de tijolos aparentes rodeado de imagens de santo, invocações e proteções de tudo que é divindade.  

         Mãe Maria era mãe do meu avô. Íamos todo mês na casa dela lá no Santa Fé. A mãe morava lá por detrás do cemitério da Santa Cruz e eu tinha muito medo de lá, tinha uma certa vergonha de ter que encarar tanto túmulo, tanta vida guardada esperando o santíssima manhã da ressurreição dos santos em Jesus enquanto eu era uma magrela mofina que não tinha nada da vida e nem esperava muito dela; era como se os mortos pudessem perguntar para mim “e tu, cunhã, que tas fazendo da vida?” e eu nada pudesse dizer. 

         A casinha dela, da mãe, era no fim de uma rua pequena. Tinha uma grota imensa, esgoto a céu aberto ladeado por mato de lajeiro, verde-escuro, uns pés de goiaba ressecados e duros. Nas laterais da casa de mãe também tinham muitos desses cotocos de fruteiras. Era pé de seriguela, umbu, carambola, tamarindo e manga de fiapo, aquela bem teresinense de comer e depois beber copão d’água gelada torando – que não poderia faltar, junto com cajuí. Eita, mas era bom ir na casa de mãe almoçar domingo. Tinha sempre arroz branco, feijão preto, farofa de frito de galinha e carne de panela com batata. Mãe usava um tempero especial no feijão que eu nunca adivinhava e descobri, anos depois, que era noz-moscada e folha de louro. 

         Quando mais novinha, mãe disse que morou nos arredores de Castelo do Piauí, mas que havia nascido em Teresina. Os outros irmãos que nasceram nos interiores de lá, naqueles assentamentos como o Dezessete de Abril, por trás de Teresina. Contava que quando enjoou da boneca, ouvindo Luiz Gonzaga, só pensava em namorar. Era viçosa, bonita. Tinha muitos pretendentes, pois que era muito para frente e perspicaz. Usava sainha curta e tinha os peitos duros. 

         Maria da Glória, filha de dona Jacu e seu Aldeado, se engraçou de um João Vitalino, que era mais lá para dentro do interior. E não é que ela pegou as trouxinhas na boca da noite e sumiu de casa? Dezoito anos incompleto, arribou de casa com João. Nesse fim de mundo dos encostos baianos, na madrugada sertaneja, onde só as estrelas davam o ar da graça e os tiús dormiam silentes deixando o ar gelado para as rasga-mortália, Glorinha (como foi chamada a vida toda) e Vitalino decidiram que o moço, de vinte e três anos, iria encangar nas costas de seu Virgulino. 

         Mas foi quase que eles partiram de banda, porque seu Virgulino não admitia homens com nome parecido do dele. Logo quanto possível, Vitalino passou a ser chamado só de João Nascimento. Ao decorrer dos anos, das matanças, dos roubos, dos assaltos, dos livramentos e das benfeitorias que Virgulino mentia dizendo que fazia, ficou só Nascimento mesmo. Mãe era esposa de Nascimento. Dona Glorinha e seu Nascimento já contavam, em 1950 e pouco, com seus filhos arando terra ou vendendo jornal quando dava; quem sabe, cortando cabelo nas esquinas empoeiradas das muitas cidades que passaram ou qualquer atividade que gerasse minimamente alguma renda. Duas meninas e dois meninos. Todos retintos de cabelo duro, como dizia no bando de Virgulino. E pense, mestre, em uns pretos duros que tinha coro de jacaré e sangue nos olhos! 

        A mais velha faleceu no caminho de vir ao mundo, virou anjo, era a estrela da pequena família. No osso seco do sertão pernambucano, vingou a primeira pelas mãos da parteira Dijé: chamava Maria do Carmo Carvalho do Nascimento. Depois, veio outra menina pelas orações e cuidados da mesma parteira e se chamava Alexandrina Carvalho do Nascimento. Quando deram fé, seu Virgu e dona Bonita já haviam sido pegos em uma emboscada. Nascimento havia fugido. Precisava, agora, de arrumar alguma estadia para que conseguissem sobreviver. Decidiram regressar e fixaram residência em São João do Piauí. 

        Mal botaram os pés do jumento em São João, Glorinha pariu sua quarta barriga: um garotinho de pele lustrada e negra como o luar do interior. Chamaram-no como o pai, João Vitalino Nascimento de Sousa Filho.  A alegria de Nascimento foi arrebatadora, finalmente um herdeiro, finalmente um homem para a casa. Iria aprender todos os ofícios que o pai sabia e que garantiam sobrevivência. Iria aprender a ser um homem decente, iria ter educação, saber ler e escrever, fazer escola. Iria aprender arar a terra, mexer com ferro quente, montar em cavalo e derrubar boi brabo, iria ser o chefe da casa quando Nascimento não estivesse mais aqui e seria, com todas as letras, dono da herança pouca que o pai trouxera das andanças com o bando de Virgu. 

         Nem contava um ano de idade de João Filho quando Nascimento deitou e amou Glorinha de novo. Numa noite quente, em cima de umas pedras maiores e mais macias que ficam nas beiras das cachoeiras e nascido sete meses depois (e quase com o risco de virar anjo) nasceu, pela primeira vez com uma parteira recente na azáfama, Herculano Carvalho do Nascimento. Esse prometia ter vindo para ser separador de águas. Já rapaz, com dez ou onze anos, ateou fogo no barracão de uns soldados porque dizia que polícia só servia para matar cangaceiro pobre e que por isso mataram o ex-chefe do pai. O menino era mais atentado que sete demônios, dizem que o cão veio na terra para aprender a ser desgraçado com Herculano. 

        Correram os ponteiros e vingaram as estações do milho, do arroz e da batata. Morreu seu Nascimento quando foi chamado, como uma despedida, para ser um capataz de plantação de soja no interior do Tocantins – cá entre nós, sabemos que foi mais que isso. Glorinha, agora dona Maria, terminou de criar sozinha essa ruma de gente que ela embuchou. Trouxe a prole para Teresina, já todos crescidos, porque aqui teriam emprego melhor, poderiam ir na escola. 

        As meninas conseguiram terminar o ensino fundamental. Os dois rapazes fizeram até o quarto ano primário. Trataram logo de ter profissão para sustentar a casa. Herculano, que já tinha criado jeito de gente (tamanha as surras que levou da mãe) e João Filho transtornou-se, depois de um término precipitado com a mocinha Celina, e só era encontrado pelas esquinas e sarjetas da antiga COHAB e entornos. Não raro era encontrado (pois sumia muito em suas andanças desvairadas) chapado de pitu, mangueira, 51, cachaça alemã e aguardente deitado nas paradas de ônibus perto da Ceasa morto de bêbado pedindo à Celina que voltasse pois muito a amava. 

        Menos de um ano, não se esperava muito mais que isso, João Filho foi acometido de uma cirrose hepática que alastrou rapidamente e terminou de debilitar o frágil e raquítico preto já tão abatido pelas desgraças que era viver em terras inférteis, com sol abrasador, pouco dinheiro, muita fome, a incerteza da vida de filho de cangaceiro e com uma casa para ajudar a sustentar mesmo tendo apenas nove anos de idade. Dizem que quando Celina disse que precisava terminar, falou a ele que era por causa da família que não aceitava; mas sabia João Filho no secreto do coração que era por causa daquele branco que ela conheceu quando entrou na escola. 

         Dona Maria enterrou seu primeiro menino. Era jovem, nem tinha vinte e oito anos. Depois, anos em Teresina já instalada, Maria do Carmo foi atingida pelo mesmo mal do irmão. Será que ela não suportou ter tido um filhinho que nasceu anjo? Carminha era diferente, sentia tudo mais intenso; era ferrenha e grosseira para esconder a sensibilidade que aflorava em sua pele sempre que se via segura e amada. Desde que o pequeno veio ao mundo com a sentença de ser estrela é que Carminha rezava a ele um terço e uma ave-maria; pedia proteção a ele e rezava para que o São Miguel Arcanjo (era para ter sido seu nome) lhe guardasse. Todo dia de noite era um ave-maria mãe de Deus rogai por nós pecadores e um príncipe guardião e guerreiro defendei-me com vossa espada seguido de um divino Jesus recebei o terço que vamos rezar. 

        Bebia para esquecer que existia. Tal dia, já acompanhada da cirrose há uns dois anos, Carminha pensou em ir visitar o Parnaíba para dar uns mergulhos. Levou sua pitu e desceu para a parte mais funda, entornou a garrafa e deixou que a correnteza de seis da noite levasse fria o seu corpinho já enfezado pelos trinta e dois anos de cansaço, romarias e rezas feitas. Quis ser estrela, encontrar seu Miguel Arcanjo e seguir em frente na maré baixa, deixa que o Parnaíba faz a ponte entre o céu e eu até que as águas do céu me encontrem, pensou. 

        Alexandrina começou de se engraçar com Paulo, filho do dono da quitanda. Ele havia feito até o ensino médio e conseguiu um emprego de carteira assinada. Levou Xandinha, como era conhecida, para morar com ele no Saci. Dona Xanda, anos mais tarde, trouxe dona Maria para morar com ela. A velha era sangue no olho, gosto de gás, não se deita para ninguém. Pediu que Xanda a levasse para a casa que ela juntou dinheiro a vida toda para construir. Xanda não teimou porque nunca nem quis levá-la para sua casa. 

         Herculano casou com Ceiça, uma mocinha que conheceu no forró. Tiveram uma vida difícil, pois Herculano e o cão eram mesma coisa. Homem petulante, reticente, mal criado e mimado – como se houvera vindo de família de doutores. Não comia isso, não comia aquilo. Maracujá em casa? Era só dele. Abacate? Quem quiser que comprasse o seu. Vendedor fino, já botou de tudo dentro da Kombi e obrigou seus quatro meninos a venderem com ele.  

         E não bastava, continuando, chegar à casa de mãe sem bater e dizer o prefixo de sempre, aquele louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo para que ela gritasse lá de dentro para sempre seja Deus louvado. Ouvia-se, então, passos ligeiros com alpargatas ressecadas, o trinco girando, a chave rodando, o cheiro de fumo mascado no ar, Luiz Gonzaga no fundo, o fole prateado apregado na parede de tijolos vermelhos aparentes, a benção mãe Maria, Deus te faça feliz e Maria te faça santa, o sinal da cruz e as pontas de dedos benzendo meu rosto e o domingo todo regado às histórias, andanças e farturas na casinha do Santa Fé em que morava minha bisavó, dona Maria da Glória, que viveu setenta vidas em setenta anos. 

 
 

Ayrla Gomes

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