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Prosa 2

O vilão da
história infantil

              O mundo externo sempre será moldado conforme o mundo interno. A realidade nada mais é que a incapacidade de conseguirmos fugir da nossa própria ficção.

 

    Era meio-dia, eu havia acabado de chegar da escola. Quando entrei, tranquei o portão, como sempre fazíamos quando papai não estava. Minha mãe, como sempre, já preparava a janta. Nós sempre jantávamos muito cedo, normalmente antes do papai chegar. Eu ainda estava com o uniforme, então precisaria tomar banho e colocar o pijama. Após, mamãe nos mandou para o quarto. Eu e meus irmãos dormíamos juntos, em dois beliches. Ela sempre se deitava no chão entre as camas e começava a contar histórias. A nossa preferida era a dos Três Porquinhos. Mas na nossa versão, o lobo mau era ainda mais mau. Ele não apenas assoprava as casas, mas também dava pancadas e gritava insistentemente para que a porta fosse aberta. A cada pancada, mamãe dizia que o lobo desejava derrubar a casa dos porquinhos, mas não conseguiria, pois a casa era forte, era de concreto. Soltávamos uma leve risada que trazia paz e também sono.

    No dia seguinte, procurei pelo papai, mas ele não havia voltado para casa. Mamãe já estava começando o almoço, ela sempre fazia tudo muito cedo. Eu e meus irmãos tomamos café e logo após fomos para a escola. Na volta, mamãe novamente estava sozinha. Meu caderno precisava de uma revisão dela, mas eu não queria incomodar. Naquela noite, mamãe mal havia começado a contar sua historinha, mas o lobo mau já havia entrado em cena. Achamos estranho. No portão alguém batia fortemente, mas mamãe, com as mãos tremendo, não queria parar a história. Logo ouvimos um forte estouro. Ela saiu correndo do nosso lado e foi até a porta da casa e deu duas voltas na chave, a trancando. Do outro lado da porta, conseguimos escutar uma voz. Era papai. Mas não entendíamos o que ele dizia. Mamãe, nervosa, passou as mãos sobre os nossos olhos e nos disse para dormir. Nós logo pegamos no sono.

    No dia seguinte, papai estava em casa. Quando levantei, demos um beijo. Ele e mamãe não costumavam conversar. Quando ela foi servi-lo com café, pude ver uma mancha vermelha em seu rosto. No passado, brigavam muito, mas ele havia prometido que mudaria. Papai estava sempre cansado, com o cabelo desgrenhado, olheiras fundas e um cheiro forte, parecido com o dos hospitais. Mas sempre nos tratava bem.

 

    Na escola, as outras crianças pareciam tão felizes. Quando as via, sentia-me ainda menor. Os adultos possuíam corpos largos e esticados, como se fossem postes. Seus olhos eram gigantes, brilhosos e profundamente diabólicos, me consumindo. Seus dentes eram igualmente grandes, com as pontas afiadas feito adagas. Quando os via, automaticamente sentia contrações dolorosas e involuntárias no estômago, em pouco tempo, o resto do meu corpo também doía. Eu sabia que precisava sair da sala, a vontade de urinar era forte, mas por ser tão frequente, a professora não iria permitir. Por isso, tentava aguentar. Mas segurar a urina causava-me uma terrível ansiedade. Meu peito disparava. A boca ficava seca e em pouco tempo minhas mãos e pés adormeciam. Eu sentia vontade de chorar. Queria minha mãe, mas ela estava sempre tão ocupada. Ficava pensando nela. Como será que a minha mãe está em casa? Será que está tudo bem?  Eu tinha muito medo de estar distante de casa, mas voltar era ainda pior. Logo em seguida, perdi as forças. Só tive a visão das minhas mãos soltando-se da mesa e depois a professora em minha frente, desesperada. Logo ela me pegou pela mão e me fez sentar no chão. Meus colegas, como sempre, riam, mas desta vez era de mim. Eu estava desorientado e lembrava dos Três Porquinhos. O lobo batia, batia forte. Assoprava — quando a minha mãe me falava isso, eu sentia o vento quente do bafo do lobo —, a terceira casa era a nossa, a de concreto. O lobo não podia derrubar — mamãe dizia. A professora me obrigou a levantar, mesmo com minhas pernas fracas. Ela ficou enfurecida. Disse que eu estava simulando. Na segunda vez que me puxou pra cima, minhas pernas moles entortaram e eu fiquei pendurado como se fosse um boneco de pano. E os meus colegas riam. Eles sempre riam. Será que o lobo mau existe de verdade ou mamãe inventou? A professora disse que não tolerava esse tipo de comportamento e me arrastou para a secretaria. Meu estômago ainda se contraía, me fazendo ter vontade de vomitar. Será que o lobo mau tinha família? Chegando lá, a diretora me xingou, disse que não chamaria minha mãe por ser a primeira advertência, mas se eu continuasse zombando da professora, tomaria alguma atitude. Aquilo não me deu medo, pois eu sabia que mamãe não tinha tempo para ir à escola.

    Na volta, a multidão da rua era sempre igual; corpos esticados feito postes, olhos agressivamente gigantes e adagas ao invés dos dentes. Vez ou outra alguém trombava em mim. Sem nem olharem para baixo, iam embora sem pedir desculpas. Quando um homem quase caiu sobre mim, disse: — sai da minha frente, moleque! Não vê que eu tô atrasado?!

    Eu pensava na mamãe, o que diria daquilo: — pare de ser bobo! Isso não é nada! — e logo ignorava a situação. O céu era meio cinza e as nuvens escondiam o Sol. Do que são feitas as nuvens? Não sabia! Será que mamãe sabia e teria um tempo para me explicar?

 

    Quando cheguei em casa, bati palmas. Ninguém atendeu, mamãe provavelmente estava ocupada. Tentei abrir o portão, mas ele tava trancado, isso significava que papai não estava. Mamãe sempre tranca o portão quando papai sai. João, meu irmão, mais um dia foi abrir o portão para mim. Quando entrei, lá estava mamãe na frente da pia, cozinhando rápido e cortando agressivamente os legumes. Meu dia não foi bom, mas mamãe está bem ocupada, talvez esteja tendo um dia pior que o meu. A janta foi rápida porque mamãe acabou se atrasando. Quando terminamos, fomos para o quarto. Mamãe apenas nos deitou na cama e deu um beijo. Alguns minutos depois, eu estava perdido em meus pensamentos. Pensava nos Três Porquinhos. Coitadinhos, tiveram suas casas destruídas. Mas os desenhos sempre nos dão um final feliz. Quando estava quase dormindo, pude ouvir aquelas batidas do lobo mau, mas mamãe não estava ao meu lado contando a história. Meus irmãos também estavam acordados, mas ninguém se mexia. Eu e João, por sermos mais velhos, nos sentimos obrigados a levantar. Após, um forte estouro pôde ser ouvido. Colocamos nossos ouvidos colados na porta. Era um homem. Um homem havia invadido a casa e estava falando coisas feias para a mamãe. Eu e meu irmão pensamos em ir até lá, mas logo mamãe foi até a porta do nosso quarto e girou a chave duas vezes, nos trancando. Com isso, eu coloquei os olhos no buraco da fechadura. Entre as sujeiras e a chave enviesada, vi o tal homem. Era papai. Ele se jogava por cima da mamãe, que tentava se defender. Ele parecia um boneco sem eixo. Mamãe derramava lágrimas enquanto tentava silenciosamente colocá-lo sentado no sofá para não nos acordar. Mas ele não queria. Quando menos esperava, vi sua mão fechada disparando rápido e violentamente contra o rosto dela. Meu estômago se contraiu. Uma forte náusea quase me fez colocar o jantar para fora. Sai da minha frente, moleque! Não vê que eu tô atrasado?! Com o alto ruído, meu irmão também pediu para olhar. João começou a chorar. Instintivamente tentou abrir a maçaneta devagar, mas a porta estava trancada. Quando olhei novamente pelo buraco, papai estava deitado no sofá como se fosse um cadáver. Mamãe estava sentada, com os dois cotovelos apoiados na mesa e a cabeça sobre os punhos. Ela chorava. Eu e meu irmão corremos para a cama.

Na manhã seguinte, papai já havia saído. Na sala de aula, novamente aquelas imagens de pessoas com corpos grandes feito postes e dentes de adagas transformando-se em monstros invadiam minha mente. O nervosismo me consumia. Meu estômago doía e eu queria levantar e sair dali. Quando pedi para ir ao banheiro, a professora não deixou. Isso me irritou, eu precisava levantar, caso contrário, novamente passaria mal e seria motivo de piada na turma. Assim, insisti, mas ela continuou negando. Quando menos esperava, meu nervosismo tinha transformado-se numa tragédia: eu havia urinado nas calças. Quando o líquido começou a escorrer pela cadeira, meu colega viu e começou a dar risada. Senti raiva. Isso fez com que eu levantasse, ignorando o fato de chamar a atenção, e desferisse um soco em seu rosto. Todos riram, não do soco, mas sim, da minha calça molhada. A professora novamente me tirou da sala e eu fui para a diretoria. Lá, a diretora ligou para a minha mãe, mas ninguém atendeu, pois ela trabalhava fazendo faxinas pela manhã, porque meu pai não ficava fixo em um emprego.

    Em casa, como sempre: palmas, mãe na pia, jantar rápido, cama. Mas naquele dia, tivemos uma péssima surpresa: papai havia voltado mais cedo. Quando ouviu os barulhos no portão, mamãe arregalou os olhos e correu até a porta da casa para trancá-la, mas vimos pelas janelas que papai conseguiu pular o muro e estava gritando em nosso pátio. Mamãe também correu para fechar as janelas. Estávamos com medo. Os dois menores choravam. Mamãe dizia insistentemente para nos acalmarmos. Nervosa, ela começou a contar uma história. Falava sobre um vilão e lembrou que no fim eles sempre se dão mal e tudo acaba bem. Mas não adiantou, a verdade nos espancava e chamava para o mundo dela, o real. Quando menos esperávamos, a porta foi arrombada, no instante criei um dos maiores medos que eu já havia sentido, ele se chamava: pai. Como na escola, meu corpo se contraiu, uma forte vontade de vomitar me tomou e um líquido por minhas pernas desceu. Eu havia urinado nas calças novamente. Papai, cambaleando, entrava nos ofendendo. Mamãe nos mandou para o quarto, mas nós, paralisados, não obedecemos. Ela gritou novamente, repetindo a ordem, mas nós continuamos parados. Queríamos protegê-la. Papai foi em sua direção, gritava, dizia palavrões e a empurrou. Com um golpe, dois copos foram derrubados da mesa e quebraram. Meus irmãos menores, assustados, começaram a gritar. Uma vasilha de alumínio também caiu, causando um som quase interminável. Nesse momento, ele veio em nossa direção, queria nos bater, o que eu havia feito? Será que ele tinha sido informado do que acontecera na escola? Mamãe, para nos defender, o puxou, afastando da gente. Numa fração de segundos, um estalar grave e alto foi escutado. Mamãe estava com a mão cobrindo o rosto. Embaixo da palma, uma marca vermelha havia sido feita por papai. Mamãe se derramava em lágrimas. Eu senti a obrigação de fazer algo. E após mais um tapa, pulei em suas costas como fazia quando era mais novo nos passeios. Ele tentou tirar-me de lá. Mas nós acabamos caindo. Com raiva, ele também começou a me ofender, mas pouca coisa compreendi. Mamãe chorava copiosamente. Eu o enlacei com o meu braço, o prendendo em um mata-leão. No golpe, acabei levando dois socos no rosto. João, em seguida, segurou suas mãos. Nesse momento, mamãe já estava chamando a polícia. Eles demoraram a chegar, mas papai não levantou. Meu corpo tremia, eu não acreditava que havia pulado em suas costas e dado um mata-leão, coisa que só havia visto nos filmes entre dois rivais. Estava em choque, me sentia ruim e um péssimo filho. Será que o lobo mau tem família? Quando a polícia chegou, como os heróis das histórias infantis, o levantaram do chão e levaram papai arrastado até a viatura. Após o acontecimento, nunca mais quis que mamãe contasse historias antes de dormir, pois papai criara dois mundos em mim, o fictício e o verdadeiro. Neles, havia um vilão, como o lobo mau dos Três Porquinhos. Nos dois, era eu.

 
 

Maria Gabriela Cardoso

É escritora, poetisa, roteirista e

idealizadora do Coletivo literário Escribas.  

Instagram:

@luapinkhasovna 

@coletivoescribas 

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