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Ensaio

O mosteiro: a casa portuguesa sob a égide do encoberto

Não entres numa casa 

de maneira súbita e inesperada, 

nem sequer na tua própria.

(Talmude)


 

    A imagem da casa constitui uma das mais antigas referências da humanidade. Simboliza o homem que já encontrou o seu lugar no Cosmo, transcendendo o estatuto de mero domicílio para assumir um caráter existencial, como nos mostra Gaston Bachelard, filósofo do imaginário, no célebre estudo A poética do espaço:

 

Nessa comunhão dinâmica do homem e da casa, nessa rivalidade da casa e do universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.  (BACHELARD, 1984, p. 227)

 

    Em outra acepção, comum desde os Livros de Linhagem medievais, o termo casa designaria, ainda, a genealogia de uma família nobre. Adquiria-se maior ou menor destaque na sociedade em função da casta ou clã ao qual se pertencesse. A casa, aqui vista como origem, regia os valores sociais.

    O mosteiro, romance de Agustina Bessa-Luís publicado em 1980, retrata a casa portuguesa nas duas acepções do termo. A narrativa tem Belchior – conhecido como Belche – como figura central, personagem que volta ao espaço de sua infância, no Vale de São Salvador, e envereda por uma pesquisa sobre a vida de D. Sebastião. Com o propósito de escrever um livro sobre o rei desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir, o protagonista torna-se obcecado pela figura do rei desejado, ao mesmo tempo em que, no espaço familiar, tem de lidar com o desprezo que recebe das tias. Excluído de seu próprio clã – formado exclusivamente por mulheres – e atormentado pela fixação no livro que planeja escrever, ele transita entre dois momentos portugueses, oscilando entre o Portugal quinhentista, no qual se embrenha em virtude da pesquisa para o livro, e o do pós-25 de Abril, seu momento atual. Num jogo psicanalítico de projeção, acometido por uma espécie de esquizofrenia, o personagem passeia simultaneamente pelas duas casas portuguesas – a da dinastia de Avis, que teve em D. Sebastião o seu último representante –, e a de São Salvador, lugarejo metonimizado, sobretudo, pela Casa da Teixeira, pertencente à família do protagonista.

    A literatura portuguesa contemporânea caracteriza-se por um processo de autognose, de autodescoberta, cuja tônica reside na estratégia de se escrever Portugal, estabelecendo-se o espaço e a terra como os verdadeiros personagens. No romance aqui analisado, tanto a propriedade citada quanto o mosteiro que dá título à obra simbolizam muito mais do que simples edificações, traduzindo imagens da grande casa portuguesa. É da incursão por essa casa, esquadrinhando cômodos por vezes sombrios, que trata nosso estudo.

    Um dos espaços-chave presentes no romance é a Casa da Teixeira, a já citada propriedade da família de Belche, habitada por suas cinco tias. Conhecida também como viveiro, a referida casa atua como exemplar de uma casa autêntica, com sua saga de mulheres, cuja autoridade beira o despotismo. As cinco mulheres que compõem o clã matriarcal das Teixeira – Assunta, Matilde, Assunção, Noémia e Aurora – apresentam traços tradicionalmente atribuídos ao elemento feminino. Extremamente diferentes entre si, cada uma delas representa, contudo, uma faceta feminina, criando na casa uma espécie de mosaico feminino arquetípico. Assim, enquanto uma delas preocupa-se o tempo todo em alimentar a família e outra sofre de um tumor uterino que lhe causa constantes hemorragias, esvaindo-se em sangue com a satisfação de quem se considera abençoada, outra lê romances açucarados e passeia em busca de um grande amor, enquanto outra, encarnando outro estereótipo feminino, caracteriza-se pelo ato de limpar obsessivamente a residência. Cada uma a seu modo, as irmãs Teixeira compõem um universo feminino alicerçado em papeis cristalizados, na estranha sintonia que estrutura o lugar. Bachelard, analisando os cuidados com a casa, observa que tal atividade acaba por conferir às mulheres um poder demiúrgico, ritualístico até:

 

Desde o momento em que trazemos as luzes da consciência ao gesto mecânico, desde o momento em que fazemos fenomenologia limpando um móvel velho, sentimos nascer, sob o terno hábito doméstico, impressões novas. (...) Quando um poeta limpa um móvel (...), quando põe com um paninho de lã, que esquenta tudo que toca, (...) cria um objeto novo, aumenta a dignidade humana de um objeto, no estado civil da casa humana.

(...) De um objeto ao outro, no quarto, os cuidados domésticos tecem ligações que unem um passado muito antigo a um novo dia. (...) Parece que a casa luminosa de cuidados é reconstituída pelo seu interior (...). No equilíbrio íntimo das paredes e dos móveis, pode-se dizer que tomamos consciência de uma casa constituída por mulheres. Os homens não sabem construir as casas senão a partir do exterior. (Ibidem, p. 240-241)

 

    Paradoxalmente, contudo, apesar do aspecto demiúrgico de que são revestidas as ações femininas ali praticadas, a casa das irmãs Teixeira é marcada por uma espécie de inércia. Apegadas às tradições, elas mantêm uma propriedade que parece, por vezes, estagnada no tempo:

 

(...) A casa das manas apresentava-se aparentemente parada no tempo, sem uma voz a varar as suas paredes dum azul pardacento. As janelas estavam fechadas e só a porta da cozinha parecia frequentável, com a vizinhança dos cães lobeiros, agachados como leões.  (BESSA-LUÍS, 1984, p. 11)

 

    A inércia que paira sobre o vale de São Salvador é intensificada pelo clima que emana da casa da família, marcada por silêncios e janelas cerradas. Apenas a entrada da cozinha – expressivamente, um espaço marcadamente feminino – parece acessível. Essa imobilidade no tempo e no espaço impede a adaptação do protagonista quando de seu retorno, acentuando-lhe o desconforto e a sensação de não pertença. 

    A aparente imobilidade do tempo observada na Casa da Teixeira toca em um ponto fundamental da ficção de Bessa-Luís: a imanência como forma de eternização. Isabel Allegro de Magalhães, ao relacionar questões ligadas ao tempo e ao feminino, identifica na obra de Agustina uma espécie de tempo feminino que, segundo ela, constituiria um exemplo fiel da duração, no sentido bergsoniano do termo. Segundo o filósofo, a duração privilegia a visão do tempo como uno, em que os momentos constituiriam um todo indivisível (BERGSON, 2011). Tal abordagem evidencia o tempo em seu aspecto qualitativo, transcendendo, portanto, a lógica linear da sucessão cronológica, meramente quantitativa. Analisando a obra de Agustina, a ensaísta mapeia alguns traços que perpassam a obra da autora no que tange à questão do tempo: “Este prolongamento do passado no presente vivido na memória destas mulheres é exactamente a experiência da durée de que Bergson falava.” (MAGALHÃES, 1987, p. 211)

    Não por acaso, a imobilidade temporal associa-se a outra, a do espaço, intensificando a sensação de permanência ligada às mulheres que o habitam. A esse respeito, afirma Allegro:

 

A ligação à terra é de certa maneira excessiva e atávica. Leva as mulheres a uma quase imobilidade total, à permanência no local de origem e até dentro de suas casas, enquanto os homens, pelo contrário, partem. (...) Trata-se duma ligação vital ao espaço: as personagens parecem parte integrante dele. (Ibidem, p. 217-218)

 

    Paralelamente ao clã das Teixeira, o outro espaço fundamental da narrativa é o do mosteiro, agora transformado em asilo de loucos. Funcionando como micro- sociedade organizada e estruturada, aquele, ao isolar os indivíduos rotulados como loucos, atribuía ao restante do grupo social uma falsa sensação de normalidade. Curiosamente, em diversos momentos do texto, a narradora questiona a patologia dos doidos do mosteiro, que, segundo ela, em nada difeririam dos indivíduos ditos normais. A transformação do mosteiro em manicômio revela-se, entretanto, expressiva, para demarcar o contraste entre o passado glorioso e a decadência do presente. Os nobres e ilustres lá enterrados ficariam indignados, especula a narradora, caso vissem aquilo em que o mosteiro de outrora se havia transformado:

 

Os Gascos de Riba-Douro, antepassados directos de Egas Moniz, se tinham ossadas nos revolvidos carneiros do mosteiro, deviam estremecê-las de pura indignação ao verem a casa conventual (...) habitada por maníacos depressivos e pequenos postulantes da neurose, paradementes e delirantes crónicos.

(BESSA-LUÍS, 1984, p. 111)

 

    A decadência constitui-se num eixo estruturador da narrativa, que traça um painel da História de Portugal a partir das idas e vindas realizadas pela instância narrante. Os golpes e ressurgimentos da casa portuguesa ficam patentes na descrição do ambiente:

O viveiro foi-se despovoando, mas não partiram completamente as almas jovens que ali tinham despertado. (...) [Josefina] encontrava dúzias de caixas de pó ocre dentro dos armários; um pó pegajoso, com cheiro seco e provocante.

(Ibidem, p. 80-81)


 

    A degradação do lugar parece corresponder à degradação histórica sofrida por Portugal ao longo dos séculos, num processo metonímico que conta ainda com a quase personificação do local, que parece sentir as intempéries históricas: “Uma paz algo esmagadora caía sobre a casa, de repente pesada de silêncio. Era como um corpo amputado de um membro ainda vivo na mente.”(Ibidem, p. 65)

    As casas retratadas na narrativa simbolizam angústias portuguesas. A casa da Teixeira, grande e pouco funcional, reflete, em seus cômodos, a identidade de seus habitantes, numa consonância entre o espaço e o estado de espírito de seus moradores, reiterando a imagem psicanalítica da casa como ser interior. Assim, o quarto de Noémia, personagem sonhadora e romântica, é suave e convida ao deleite:

 

(...) O seu quarto era o mais belo da casa, com cortinas de renda e um tapete persa de cores delicadas, tão suave como pão de leite. Tinha uma cama alta, com cromados, onde ela passava parte do tempo, lendo novelas e recortando o pano dum bordado. (Ibidem, p. 29)


 

    O quarto, sem dúvida o cômodo mais ligado à intimidade, apresenta-se em consonância com a mulher que o habita. Os elementos nele presentes – cortinas de renda, tapete de cores delicadas – acentuam o caráter sonhador da personagem.

Além dos aspectos já mencionados, seu temperamento nada prático é evidenciado pelo monte de objetos inúteis que ela insiste em colecionar:

 

(...) Eram guarda-fogos que nunca seriam montados nos seus caixilhos e que ficavam, entre folhas de papel fino, nos grandes gavetões dos lavatórios, também atulhados com velhos retratos e molduras de uso (...). Coisas retro, um pouco inevitáveis e discordantes, na função que nunca tinham exercido completamente. Noémia tinha o quarto cheio dessas revelações sem aventura (...) (Ibidem, p. 29-30)


 

    As quinquilharias amontoadas pela personagem são, em sua maioria, objetos que de alguma forma dizem respeito ao passado – velhos retratos, coisas retrô –, numa indissociável relação entre tempo e espaço. O passado assombra cada canto da Casa da Teixeira, sugerindo, no âmbito doméstico, a mesma nostalgia que, no plano histórico, evidencia o sebastianismo que marca o Vale de São Salvador.

    A harmonia da casa, decorrente da integração das mulheres que a habitam, parece ruir com a morte de uma delas. As épocas de opulência e de ruína vividas por Portugal imprimem sua marca ao lugar, que, metonimicamente, reflete o país:

 

Mas, em 1834, (...) a casa dos Teixeira estava outra vez de pé (...). Possivelmente foi nessa ocasião que apareceram em casa imagens douradas e grandes colgaduras de damasco escarlate. 

(Ibidem, p.34)

 

    A fase de opulência da casa da Teixeira é expressa por imagens douradas e pelos tons de damasco escarlate, conferindo uma quase nobreza ao lugar. Já as intempéries são demarcadas por signos relativos à degradação ou à deterioração, como o soalho podre com que o personagem se depara ao adentrar a casa:

 

(...) Na grande casa que começava a mostrar indícios de deterioração. Assim, quando entrou na sala de jantar acautelou-se para não meter o pé no sítio podre do soalho de castanho. 

(Ibidem, p. 17)


 

    O espaço português metonimizado na narrativa oscila entre a glória e o fracasso, numa contradição expressa pelos personagens. O lixo que se acumula e a inadequação das marcas de um tempo glorioso perpassam a narrativa:


 

(...) Salvador, encerrado cada vez mais em buracos, luras, cantos, a começar pelo seu escritório de Mompilher (...) com a beleza mórbida dos detritos, do lixo batido pelo vento e as coisas que não atingem a inutilidade absoluta: colchões urinados dalgum velho paralítico conservando nas linhas verticais do pano desbotado uma certa fascinação geográfica, de trópicos invertidos e divisas dos mares. (...) Salvador amava esse vil esquecimento da renovação, a baixa miséria, morna, com qualquer coisa de sensual e habitado por dentro.  (Ibidem, p. 129-130)


 

    O apego ao passado como traço da personalidade de Salvador – pai de Belche, único representante masculino numa família de mulheres –, já parece sugerir o apego ao messianismo, marca do sebastianismo, obsessão que acaba por contaminar o filho. A fixação em torno da figura de D. Sebastião transporta-o ao passado, estabelecendo um vaivém que acaba por evidenciar a decadência do presente, reiterada pela imagem de lixo ou de detritos. A doença que acomete o personagem metaforiza o quadro de degradação sofrido pelo país. As referências a colchões urinados ou espelhos manchados traduzem a dissonância entre passado e presente estruturada no romance, uma vez que simbolizam a decrepitude e a dificuldade em se enxergar a própria imagem, respectivamente. O mosteiro apresenta o retorno do protagonista à casa das tias, temática que se repete, ao longo da narrativa, com outros personagens que também acabam por ter de lidar com o doloroso confronto entre o passado glorioso e o momento presente. A reação de Noémia ao entrar no mosteiro é de choque, pois a imagem com que se defronta em nada corresponde às lembranças de outrora:

 

(...) [Noémia] ouvia com horror o caruncho nas madeiras da armação. Tudo estava arruinado, um pó amarelo cobria o soalho, e os estuques brancos pareciam sudários pendentes entre os altares. (...) Mas os altares tinham sido desmontados para se observar a traça primitiva. O púlpito também já não existia. (Ibidem, p. 67)


 

    Traças e carunchos refletem a deterioração daquele que constituía o seu espaço de refúgio, sendo a ruína do presente diretamente proporcional à suntuosidade do passado. Segundo a perspectiva de Bachelard, a situação de alguém que volta, após anos de ausência, ao lugar da infância, evoca, mais do que um deslocamento espacial, um movimento temporal. A verdadeira viagem ocorre no tempo, pois é o homem de hoje que se confronta com imagens da infância. O retorno do protagonista à casa das tias possibilita o reencontro com o seu passado, com o passado português, e sua aproximação com o espaço circundante faz-se notar pela sintonia entre ambos. Rejeitado pelas tias, que o menosprezam por ser homem, ele apresenta uma relação quase sensorial com a casa. A esse respeito, o filósofo destaca a complexidade presente no retorno à casa natal, dada a subjetividade envolvida nas reminiscências suscitadas por tal movimento:

 

A casa da lembrança se torna psicologicamente complexa. A seus abrigos de solidão se associam o quarto e a sala em que reinaram os seres dominantes. A casa natal é uma casa habitada. Os valores de intimidade aí se dispersam, não se tornam estáveis, passam por dialéticas. (...)

É no plano do devaneio e não no plano dos fatos que a infância permanece viva em nós e poeticamente útil. (...) Habitar oniricamente a casa natal é mais do que habitá-la pela lembrança, é viver na casa desaparecida como nós sonhamos. 

(BACHELARD, 1984, p. 206-207)


 

    A subjetividade e o devaneio detectados pelo filósofo francês fazem-se notar no passado revivido pelo protagonista ao se embrenhar pela casa, passado tão mais vivo em virtude da imobilidade reinante no lugar. Seus medos, desejos e tabus fundem-se às lembranças:

 

[Belche] lembrava-se dum terror, apreciado como um deleite, quando tinha três anos e uma lavadeira da casa o deixara entrar no quarto da roupa suja. Os altos cestos de vime exalavam um cheiro adocicado como de cadáver; a mulher separava as peças, lençóis manchados, panos de menstruação, toalhas que guardavam ainda o perfume do banho e os cabelos como vírgulas num papel branco.  (BESSA-LUÍS, 1984, p. 126)

 

    Note-se a transgressão cometida pelo personagem: além de adentrar um recinto restrito – o quartinho de roupa suja, que esconde as máculas e secreções das pessoas da casa, com seus segredos e intimidades –, ele ainda trava contato com aspectos sexuais (“lençóis manchados”) e femininos (“panos de menstruação”).

Em outro momento, o seu temperamento introspectivo é explicitado através de seus recantos prediletos: o quarto, o banheiro e a latrina no final do corredor:

 

(...) Lia muito (...) ora fechado no seu quarto, ou na retrete, seu lugar de mais íntimo recolhimento. (...) Sobretudo a sentina antiga que ainda existia no extremo dum corredor, na casa dos Teixeira, era o seu gabinete preferido; como para todos, era um sítio algo mítico que outrora atraía as crianças com as suas amas para que lhes contassem histórias, na obscuridade. (Ibidem, p. 70)

 

    O caráter introvertido do protagonista revela-se nas atitudes – fechar-se, viver isolado – e nos locais por ele eleitos como favoritos: o quarto, espaço de intimidade e de recolhimento, e a retrete, espaço escatológico, ligado à sujeira e à excreção, sugerindo aspectos obscuros associados ao personagem.

    O último capítulo d’O mosteiro intitula-se O medo e constitui uma narrativa autônoma em relação ao romance. Numa estrutura de mise en abyme, Belche – até então o protagonista de uma narrativa em 3ª pessoa –, assume o papel de narrador para narrar a história de D. Sebastião. Tem-se aqui o acesso à obra que ele escrevia de forma obsessiva. Mesmo aqui, contudo, a narrativa é por vezes interrompida por digressões sobre a sua infância, momentos em que o narrador divaga, agora em 1ª pessoa, sobre a casa:

 

Quando eu tinha seis anos ainda dormia no quarto de minha mãe. O quarto tinha uma varanda com gradeamento, e os ramos dum grande jacarandá passavam muito acima dela. De noite eu acordava e (...) punha-me a imaginar a entrada dum negro que trazia no ombro uma corda de laçar cavalos. (...) Era apenas a espaçosa fronde do jacarandá, coberto de flores roxas, tão copado que parecia abrigar toda a casa. Eu sabia que era o jacarandá. Mas a presença de minha mãe (...) dava-me a ousadia precisa para amar o meu terror.  (Ibidem, p. 273-274)


 

    O medo manifestado por ele tem sua origem nos ramos do jacarandá, que assumem a forma de um homem a ameaçá-lo da varanda. Além da óbvia conotação fálica contida nos ramos da árvore, sugerindo algo de problemático no tocante à própria sexualidade do personagem, ele confessa ainda amar o terror, em virtude da segurança trazida pela presença da mãe, conferindo à situação traços edipianos e masoquistas, num jogo em que ele parece brincar com os próprios temores.

    As reminiscências da casa da infância pautam ainda o seu relacionamento tempestuoso com o pai, a quem vê como um estranho. As lembranças são marcadas por impressões sensoriais – o aroma do charuto do pai, outro símbolo fálico – e seus temores aparecem relacionados a aspectos da casa. A visão de Salvador como uma espécie de intruso contamina inclusive sua relação com o filho, que, talvez pela ausência de uma referência paterna, assume uma feição andrógina, vislumbrada, por exemplo, na descrição de seu quarto:

 

(...) Josefina inspecionou o quarto. A cama de meias colunas, que pareciam membros amputados e, ainda mais, invadidos pela gangrena, repugnou-lhe.  (Ibidem, p.180)

 

    O quarto, com colunas que se assemelham a membros amputados e gangrenosos, sugere a impotência do dono. Josefina, personagem que ao mesmo tempo o fascina e o amedronta, decide mudar a disposição dos móveis, numa transformação simbólica do interior – e da sexualidade – do rapaz.  Significativamente, quando o quarto adquire elementos que denotam virilidade, ele não mais o reconhece como seu, optando por outro, pobre e com móveis defeituosos:

 

Com vagar e minúcia, ela foi-se encarregando de mudar o aspecto daquele quarto, primeiro alterando a disposição dos móveis, depois organizando uma limpeza (...). Um dia Belche não reconheceu o seu belo ninho, com cheiro de tabaco de cachimbo e aquela presença de homem que tinha algo de seguro e de salutar. Pensou mudar-se para o quarto do tio Bento, o mais pobre de todos, com um leito de ferro e uma cómoda cujas gavetas emperravam.  (Ibidem, p. 180-181)

 

    O não reconhecimento como seu de um lugar com aroma de tabaco e presença de homem traduz a dificuldade do protagonista em assumir uma identidade masculina, dado revelado pelo refúgio emocional em que ele mergulha, espaço de devaneio, ao relembrar os tempos em que dormia protegido pela mãe. A problemática em relação à própria intimidade fica ainda sugerida pela escolha de um lugar com gavetas emperradas, sutil metáfora de uma intimidade que permanece travada.

    A temática do espaço é flagrante no texto, principalmente em seu aspecto psicológico, e é expressivo o fato de o discurso de Belche ser ostensivamente marcado por referências ao lugar. Seu desejo de superar os próprios limites e o mórbido fascínio por tudo o que o amedronta ficam patentes em sua relação com o espaço que o envolve. Em dado momento, durante uma visita ao chalé do amante de Josefina, amiga por quem ele desenvolve uma paixão platônica, ele respeita a intimidade do local, reverenciando e reconhecendo a casa:

 

(...) Uma casa desconhecida sempre desperta um sentimento de insegurança e de renúncia, semelhante a uma paixão. É como se um segredo nos fosse revelado e, ao mesmo tempo, atingisse a nossa verdade mais íntima. (Ibidem, p. 282)

 

    A simbologia da casa mais ligada à vertente psicanalítica vê nela uma imagem feminina de refúgio e proteção. Seus diferentes andares e cômodos simbolizariam diferentes estados da psique, possibilitando o trânsito pelas esferas da mente, como sugere Bachelard:

 

A casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervêm, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. (BACHELARD, 1984, p. 201)

 

    Nessa perspectiva, os dinamismos sugeridos pelas diferentes esferas temporais podem se opor ou se complementar. No texto, que tematiza a saga de uma família e a escrita de um livro, não por acaso as esferas do passado e do presente se entrecruzam. Apesar de o clã das Teixeira não o acolher, é nessa casa da infância que o protagonista se refugia, a cada vez que se sente ameaçado:

 

Todas as vezes que se apresentavam ocasiões de temor era como se eu me reportasse àquele quarto da minha infância, velado pelo próprio sono da minha mãe. Os caminhos solitários, que tantas vezes percorri em S. Salvador, com os vultos que os cercavam e que pareciam homens de atalaia, atraíam-me, e eu experimentava uma emoção, quase encontrada com lágrimas, ao andar por eles. (...)  (BESSA-LUÍS, 1984, p. 276)

 

    Entretanto, a viagem no tempo efetuada por ele ultrapassa o jogo entre o presente e a infância. Ao enveredar mais profundamente pelo mito sebastianista, Belche parece fundir as duas casas portuguesas, amalgamando passado e presente, reavaliando os traumas históricos portugueses; os resultados da pesquisa sebástica justapõem-se à sua própria realidade, que mescla o Portugal de outrora ao atual. Ao pensar o trauma português de 1578 – data do desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir –, ele reavalia o de 1974, com a perda das últimas colônias africanas, fazendo com que um simples mergulho em seus devaneios coloque-nos, abruptamente, no Portugal quinhentista. 

    O jogo esquizofrênico do protagonista é desencadeado pelas semelhanças por ele detectadas entre a Casa de Avis e a da Teixeira. A primeira delas, dolorosamente sentida por ele, diz respeito às famílias regidas por mulheres, que excluem e desestabilizam o homem. Em dado momento, ele confessa que a obra sebástica nada mais era do que uma tentativa de se isolar do seu próprio drama, “um pretexto para recuar na sua fatalidade ilimitada” (Ibidem, p. 288). Curiosamente, porém, os caminhos de que se utiliza para pensar a figura do Rei Desejado desencadeiam justamente reflexões e lembranças acerca de sua própria história. A negação de carinho e o convívio exclusivo com mulheres austeras acarreta uma nova semelhança: ele, assim como D. Sebastião, seria acometido por uma quase misoginia, uma relação problemática com as mulheres com que se depara: 

 

(...) É duma comovente solidão esse rei que nunca se libertou dos terrores infantis (...). A sua inibição sexual inclui-se também no comportamento fóbico. (Ibidem, p. 264)

 

(...) Belche gostava (sem prazer, apenas como expressão imaginativa, como estado que não se definia fisicamente (...), de desejo não integrado na realidade) de observar essas raparigas, sempre diferentes, que se sucediam na casa de José Bento. (Ibidem, p. 167)

 

    O tipo misógino – talvez decorrente de uma identidade quase andrógina – do rapaz faz-se notar ainda quando de sua já mencionada ida à casa do Costa, amante de Josefina, por meio de uma percepção do caráter fálico que atribui à mata que rodeia a casa por onde ele se embrenha:

 

As altas dedaleiras roxas tocavam-me a cara e o feto macho deixava cair o seu pó sobre mim. Eram sobretudo as árvores que me davam uma impressão de poder generoso. Algumas tinham fungos aderidos do tronco, ou cogumelos enormes, o que era sinal de velhice. 

(Ibidem, p. 278)

 

    Suas impressões acerca das adjacências da casa parecem reforçar a sua suposta androginia – ele cita um feto macho cujo pó cai sobre ele, numa simbólica sugestão de um ato sexual em que ele se vê em papel passivo. As árvores, fálicas e imponentes, contrastam com a fragilidade do personagem, acentuando-a.

    Além de serem oriundos de casas nas quais, por força das circunstâncias, o poder era feminino, e da decorrente dificuldade nas relações com as mulheres, outros elementos aproximam a Casa da Teixeira à de Avis, acentuando a obsessão do protagonista. D. Sebastião não chegara a conhecer o pai, e o relacionamento de Belche com o seu é distante, quase ausente. Ambos apresentam uma forma peculiar de lidar com seus medos, desafiando-os de modo quase insensato, na ousadia exigida dos homens. Além disso, havia, no Vale de S. Salvador, uma permanência da linhagem, como se todos acabassem por pertencer ao mesmo clã. Tal peculiaridade reveste a Casa da Teixeira de uma quase nobreza, que parece remontar ao tempo dos Livros de Linhagem. Significativamente, Belche é excluído dessa casa, que atravessa o tempo e resiste às intempéries: 

 

(...) A gente da casa Teixeira não perseguia senão a incúria, e o triunfo era para ela sagrado. (...) [A casa] sempre fora erguida e amparada por mulheres, através de sacrifícios obscuros e astúcias vingativas e austeras (...) Os homens ficavam voluntariamente excluídos dessa trapaça insidiosa em que se governava a propriedade tantas vezes em crise.  (Ibidem, p. 220-221)

 

    As duas casas e os dois tempos portugueses retratados n’O mosteiro correspondem a dois recortes na História de Portugal. Como numa peça teatral – e o simulacro é a tônica da obra sebástica – o protagonista escala aqueles que o rodeiam, buscando neles características que os aproximem dos personagens da Casa de Avis, estabelecendo uma espécie de correspondência entre ambos.  Paradoxalmente, quanto mais ele se refugia na história de D. Sebastião, cujo desaparecimento culmina na queda de Portugal em domínio espanhol, mais ele pensa a sua própria história, com a frustração portuguesa de seu tempo, a da perda das colônias em África.

    A narrativa põe em xeque duas casas portuguesas, e nesse sentido é expressivo o fato de Josefina desaparecer misteriosamente, gerando especulações. Como se isso não fosse suficientemente sugestivo, tem-se a informação de que as mulheres da Teixeira aguardam o seu retorno.  Curiosamente, entretanto, o messianismo tem agora como foco uma figura feminina, coerente com o matriarcado ali estabelecido. Há um déjà-vu histórico nesse vale envolto em brumas. O nevoeiro, símbolo da crença no retorno de D. Sebastião, encobre e aproxima as épocas, ao mesmo tempo em que vislumbra a mudança. Como nos indica a sua simbologia, “o nevoeiro marca uma fase de evolução, precedendo revelações importantes.” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1990, p. 634-635). Talvez tais revelações surjam a partir da versão árabe da Batalha de Alcácer-Quibir, pois, ao contrário do que sugere a História de Portugal, que respalda de forma velada a lenda do retorno do rei – apoiada no fato de o corpo nunca ter sido encontrado –, os documentos árabes, bem menos fantasiosos, afirmam ter sido ele afogado. O cronista árabe aponta uma saída, e o vale de São Salvador, que prosperou somente após o desaparecimento do rei, surge agora marcado pela influência árabe, numa situação ao mesmo tempo irônica e libertária: 

     

Ele via aquele fechado ermo de S. Salvador. Era uma terra que tinha ainda a preferida face mourisca, como um jardim profundo onde nunca entrara a lança inimiga. (BESSA-LUÍS, 1984, p. 171-172)

 

(...) Produziram-se notáveis inovações (...) A torre (...) foi mais tarde restituída à traça original e totalmente desligada da igreja. Perdura agora na sua forma mourisca (...) De resto, há vestígios dos costumes árabes ainda em S. Salvador. Os lugares parecem aduares, com as mulheres vestidas de preto e o lenço amarrado até o meio do rosto. (Ibidem, p. 317)

 

    O fato de o lugar cujo dinheiro subsidiava as aventuras expansionistas durante o reinado de D. Sebastião revelar-se no presente marcado por influência árabe – tanto na arquitetura como nos costumes – sugere uma mudança de perspectiva paradoxalmente benéfica a Portugal: o Vale de São Salvador é agora livre.

    As unidades de espaço d’O mosteiro refletem, de certo modo, aspectos temporais do imaginário português. Ambos se articulam, na medida em que a estagnação dos núcleos espaciais sugere, por extensão, a imobilidade do tempo. Topos e cronos articulam-se, com os lugares presentes na narrativa metaforizando cômodos de uma grande casa. O viveiro, como uma grande cozinha, é repleto de mulheres, que ali atualizam suas receitas e poções. Um espaço tradicionalmente feminino, que alimenta o imaginário. O asilo de loucos, como um quartinho dos fundos ou um sótão ou porão, abriga tudo aquilo que se quer tirar do convívio; local de seres/objetos marginalizados, que estão em situação inferior em relação às partes nobres da casa. São vários os cômodos dessa grande casa portuguesa cuja chave está na autodescoberta. Grandes mitos trancaram-lhe a porta, talvez para impedir que os barões assinalados dela escapassem. Cumpre abrir essa porta, descobrindo-se.


 

BIBLIOGRAFIA

 

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

BERGSON, Henri. Durée et simultanéité – a propôs de la théorie D’Einstein. Paris: Librairie Félix Alcan, 2011.

BESSA-LUÍS, Agustina. O mosteiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1984. 3 ed.

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Tatiana Alves

É escritora, doutora em Letras,

com pesquisa sobre a representação

do feminino na literatura

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