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Prosa 1

Novas Velhas Obsessões

Carregamos na casa

nossos deuses domésticos

 

Gaston Bachelard

 

    Desde o início da pandemia adquiri uma nova obsessão. Não, não é o ritual de lavar as mãos, nem benzer a casa de álcool gel. Mas por conta das caminhadas que se tornaram frequentes, para me oferecer um mínimo de cuidado e saúde física e mental, comecei a estar mais atento às casas enquanto caminho — pequenos rituais para não enlouquecer.

Tem gente que, ao caminhar e ficar consigo — como é o caso de um escritor que gosto, Jonathan Frazen —, aproxima-se dos pássaros. E isso se torna uma paixão (ele se tornou um observador de pássaros). A partir disso, desenvolvem outra série de sintomas (benéficos, é bom dizer), como os de serem vigilantes do meio ambiente. Pois os pássaros representam notável expressão de beleza de tudo aquilo que não é humano. Um romper com um ciclo de narcisismo autocentrado.

    Mas a paixão que venho declarar é a de estar cada dia mais e mais enamorado por casas.

Então, de que raios estou falando aqui? No que as casas diferem dos pássaros? Ou melhor: em que se parecem? E como elas se distinguem dos apartamentos e quarto-cozinhas botulínicos? Quando estamos em apartamentos, passamos muito tempo ocupados em refletir sobre os limites, sobre as nossas impossibilidades... As nossas aspirações e paixões ficam derruídas quando o mundo se torna uma máquina de engolir casas, terras e sonhos. Diante da ordem imperial capitalista, vamos virando mendigos. 

Enquanto estou caminhando e pensando isso, volto-me para a singularidade das janelas e outras figuras arquetípicas das casas, mas não fantasio sobre as vidas e acontecimentos ali dentro. Fantasio as casas comigo em seu interior, fora do seio de nossas celas — ainda mais em tempos de quarentena e isolamento físico.

    Porque as casas têm poder. São sinônimos de liberdade. Têm a capacidade de nos restituir uma sensação antiga, tão antiga quanto as nossas próprias existências: os alicerces de nossa infância cheia de entusiasmo. Que quando já me encontro em terra quase firme (de meu apartamento), pós caminhada, para minha surpresa alcanço abrigo e respaldo ao ver no brilho das palavras do filósofo Bachelard, a confirmação das perambulações de meus pensamentos:

 

    “A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz. [...] E o poeta bem sabe que a casa mantém a infância imóvel ‘em seus braços’”.

 

    Diante dessa fórmula, só me resta sonhar mais. Concreta ou simbolicamente, é bom o sentimento de lembrar do estar protegido, ainda mais quando a gente nem precisava se dar conta disso, pois os pais estavam lá. Pois assim é a infância. Ou algumas infâncias. É o parâmetro de segurança que tortamente buscamos sem dar-nos conta disso. Essas casas, infâncias, cheiros e pensamentos perdidos. 

Outra coisa que dizem por aí é que as casas pensam. Já os apartamentos não pensam. Se multiplicam como vírus, uns iguaizinhos aos outros.

As casas sentem essas ameaças à sua volta, temem os assaltos dos condomínios — e dos ladrões. Como a gente, as casas só pensam em desabar quando as dores são maiores do que as que podem suportar. Casas são habitadas por silêncios. Elas habitam o silêncio. É esse silêncio que lhes dá vida.

O que as casas sentem enquanto nela vivemos? E o que realmente pensamos enquanto estamos pensando? Enquanto caminho, é nisso que geralmente penso. Normalmente, não estamos atentos a isso.

    As paredes de uma casa são dotadas de sensibilidade para as intensidades vividas nela. Eu diria que elas sofrem de saudades também. De nossos sonhos? De nossos anseios e vidas não realizadas? Daquilo que nos escondemos, como ratos infestando a cidade, por mais e mais ilusões? Talvez tenhamos delas uma saudade que não passa, um desejo de ali desabar e abandonar-se como quem cede a um deus, sem martírio. A rendição de um verdadeiro devoto.

    As casas como bens a serem protegidos. Até de nós mesmos. Por dentro delas, algo sempre pronto a nascer. Pois, na poética do espaço, “a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente nosso primeiro universo” — nos avisa Bachelard, como um pássaro que não cansa de nos lembrar.

    Na casa, como na escrita, desejamos recriar e abarcar o mundo e o universo em sua totalidade. Casas, pássaros, árvores, pessoas, amores, todos juntos nessa cosmovisão. E aqui, conto com todos que puder; de um lado, Bachelard, de outro, Frazen, para terminar. Nossos padrinhos e vizinhos literários.

Frazen retratava sua paixão por novas espécies de pássaros dessa forma:

    “Estou atrás sobretudo da autenticidade perdida, dos vestígios de um mundo devastado por seres humanos, mas ainda lindamente indiferente a nós; vislumbrar um pássaro raro que de alguma maneira persiste em sua vida de procriar e se alimentar é um prolongado deleite transcendental.”

A casa no mundo “moderno” é esse pássaro raro. Um nascedouro que ainda pode conter vida.

Caio Garrido

É mestre em CIências da Saúde,

psicanalista, e escritor. Tem seis livros publicados, incluso o "Paniricocrônicas: Crônicas dos Sonhos em tempos de Pandemia", do qual a crônica foi retirada.

Instagram:

@ caiogarridopsicanalista
@paniricocronicas.livrocaio

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