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Resenha

Nas encruzilhadas do manto:
a múltipla jornada da casa-cosmo

    Fina tessitura poética, voz urdida no corpo sagrado do livro-casa, travessia pelo cosmo, ode cara aos velhos aedos e às sábias tecedeiras, viagem de autoconhecimento, saga marítima e desbravamento do gineceu-lar, Oikospoética: a tecelagem literária de retorno ao lar, de Carol Bernardes, é uma obra desafiadora, um convite ao leitor para que retorne à ancestral experiência de conhecer o mundo pelas histórias engendradas em torno da feminina lareira.

    Em louvor à Hécate, a escritora entrelaça três jornadas distintas, a de Penélope, de Odisseu e a sua própria para revisitar o clássico tema do nóstos numa perspectiva que torna a casa não somente um local para o qual se regressa, mas também um espaço por onde se pode perscrutar segredos imemoriais. Com maestria, compõe um canto em forma de colcha de retalhos (épicos e cotidianos), onde a múltipla jornada das personagens pelos cômodos da habitação se transfiguram numa singular e mítica aventura de retorno, de reencontro do ser humano com as forças primordiais do cosmo. 

 

    Nas tradições xamânicas ancestrais, o movimento da volta para casa é simbolizado por uma cerimônia do xale, no centro da qual o filho exilado de suas terras recebe nos ombros o tecido de seu povo, a retomada dos valores e ensinamentos vivos que fazem parte daquela tradição, o que representa também ser envolvido no abraço da Mãe Terra, a que acolhe todas as criaturas que desejam voltar para casa.

 

    A saga do errante Odisseu, imortalizada pelas epopeias helênicas de Homero e de Nikos Kazantzakis, é o ponto de partida para a autora tecer a sua própria composição, entremeando as vozes da tradição androcêntrica com as do feminino e da casa para empreender uma nova viagem e remodelar o papel das mulheres no mundo. Ao conduzir as lendárias personagens do mundo épico ao sagrado espaço do lar, ela busca dar vida a uma surpreendente palinódia, responsável por inscrever novos significados a narrativas consagradas pelo cânone.

    Irmanada com Penélope no processo de desfiar mantos, Carol Bernardes se recusa a manter a patriarcal oposição entre o homem viajante e a mulher estática do lar para, em seu lugar, criar uma jornada que coloca em trânsito as forças masculinas, femininas e da própria casa. Tomada pela prosa órfica da escritora – espécie de feitiço ancestral –, o oikos (morada) adquire vida própria e marcha em confluência com as forças do universo, pulsando e reunindo dentro de si a fluidez primeva da humanidade para ir além da antinomia homem-mulher.

 

    Cada cômodo contíguo desenha planos e retas para configurar a totalidade do que existe – os homens, os peixes, o inanimado, a floresta. Não são caixas ou estruturas fechadas de aprisionamento; os aposentos de uma casa abrigam forças pulsantes do universo, disponíveis ao desejo, à vontade humana de com elas trabalhar.

 

    O leitor, prontamente acolhido no início da leitura pela voz-guia, é advertido, já no alpendre da habitação, de que as noções tradicionais de narrativa serão subvertidas, substituídas pela pluralidade de formas textuais que se articulam e se reconstroem conforme avança pelo interior da moradia. Numa realidade marcada pelo dinamismo da viagem, a tecelagem verbal se envereda por múltiplos caminhos, evitando se acomodar em formas literárias previamente conhecidas para gozar da liberdade de trilhar as sendas de uma sonora e híbrida prosa poética.

    Como em diferentes jornadas místicas, a travessia pela casa é composta por três patamares que se ligam à ideia de origem, morte e recriação, levando os viajantes a percorrerem espaços de aprendizado que os depuram e os levam a uma nova compreensão do cosmo. Em Seiva, a primeira etapa da expedição, o lar se confunde com o corpo e com o útero feminino, descrito como um lugar de criação, de cuidados, de interação e de desenvolvimento pleno das potencialidades da vida. 

    Já em Raízes, o oikos é apresentado, inicialmente, como espaço alquímico onde o caldeirão, as ervas e a cozinha se tornam representações do poder feminino ligado à bruxaria, capaz tanto de curar enfermos quanto de religar a profana realidade ao mundo milenar da magia. Entranhando-se, porém, pelo solo, as mesmas raízes realizam uma outra importantíssima viagem, a catábase ou descida ao mundo dos mortos, para encontrarem nos subterrâneos do lar (metáfora do inconsciente humano) o fogo primordial responsável pela ascese do viajante. De acordo com Ami Ronnberg, em O Livro dos Símbolos (Taschen, 2012):

 

    A descida para as regiões “inferiores” e infernais da mente é um aspecto essencial do processo de iniciação em quase todos os cultos de mistério e viagem heroica. (...) está ligada à ascensão nos ciclos eternos da natureza registrados nos nossos “altos e baixos” psíquicos: a morte e a corrupção conduzem à renovação, as coisas dissolvem-se e reagrupam-se; a alquimia executa a medicina “espagírica” de análise e síntese, a consciência expande-se e fica personificada como experiência.

 

    Rama, a última etapa da travessia, apresenta o processo de iluminação e de completa transformação dos viajantes, levando-os a se integrarem, como no episódio da Máquina do Mundo de Dante Aligheri e de Camões, aos poderosos e indizíveis mecanismos que impulsionam o universo. A casa deixa, assim, sua roupagem de espaço de travessia para assumir forma anímica, transfigurando-se num ente sábio e oracular que se revela e projeta sua chama sobre o manto de Penélope, de Carol Bernardes e de todas as mulheres fiandeiras de histórias. 


Rodrigo Marques de Oliveira

É doutor em Estudos Literários, com pesquisa sobre literatura grega clássica.

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