Poesia
Madrugada vazia
(um poema em vários atos, para qualquer ancião sobrevivente)
A despeito de qualquer desculpa
me desculpe se peço para me ouvir
faça-se quieto um momento, por favor!
Naquela casa de cômodos assimétricos
vive um velho que pensa velho,
pois o novo o incomoda.
Enquanto escuta o único som que ouve agora:
sua velha cadeira de balanço que range
uma canção melancólica,
pensa nos risos dos filhos pequenos,
nos sons melodiosos das músicas de outrora
em oposição às músicas malucas quando adolesceram.
Lembra-se do cheiro e sente o gosto na boca
das deliciosas polpetas e bolinhos de batata
que sua mulher fritava cantando alegre
uma marchinha de carnaval
pode ouvir sua voz melodiosa
como se ela estivesse ali ao seu lado
não naquela laje fria onde ousou deixá-la
─ Eu não queria, juro!
Assusta-se com o próprio grito pra ninguém ouvir.
Queria tê-la eternamente
quente perto quando num sonho qualquer
virava-se na cama e batia em seu rosto
ela o xingava acordando aborrecida
mas, aquilo parecia um elogio
(às vezes, fazia de propósito!)
Já que ele a acordara,
levantava-se e ia fazer um chocolate
onde ambos jogavam nas xícaras
pequenas bolachinhas Maria
que comiam lembrando alguma peripécia feita pelas crianças...
Tinha a do...
meu Deus, você trocou o nome dos meninos?
Há... quantos anos?
Você é um velho bobo mesmo, nem se lembra quando foi.
E se riam por não se lembrarem a data do tal acontecimento.
Quando davam por si, o dia dizia alegre: bom dia!
Agora, quando acorda no meio da noite tem medo de se levantar,
pois a graça das brincadeiras dos pequenos
estava em ambos recordarem
e cobrarem-se detalhes, como um jogo de memória.
Agora tem medo de voltar
a dormir e pensa que se pode acordar
e nada vai preencher o vazio daquela madrugada
Deus pode castigá-lo e levá-lo embora.
Que utilidade tem agora para o mundo?
Se for embora que falta fará aos filhos
que continuam cheios das traquinagens da vida?
E deixa-se ficar ali, no meio da madrugada,
com o velho corpo preso à cama, com os olhos no teto
contando carneirinhos, que teimam em não o obedecer.
E quando percebe que quem pulou a branca cerquinha;
que cuidadosamente construiu, foi o dia,
fica desanimado...
Porque o mesmo anuncia mais um dia
de reflexão vazia e sem qualquer alegria
passa distraído e à revelia nem lhe deseja:
—Bom dia!
Edih Longo
É Linguista, dramaturga,
romancista, poeta, contista, cronista e atriz teatral, formada pela USP/SP. Ganhou prêmios nestas modalidades. Atualmente aposentada, dedica-se a escrever e atuar.