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Prosa 2

Despertar

Primeiro dia

 

    Acordei hoje com uma sensação estranha. Segundo o relógio, já passa das duas horas. Duas e dez da tarde, para ser mais precisa, embora o relógio não seja digital. Bem, se não é digital, ele não marca a diferença entre a.m e p.m., caso em que poderiam ser pouco mais de duas da manhã, mas eu adormeci de madrugada, e a sensação de já estar dormindo há algum tempo me dá a certeza de que estamos de dia, embora não haja janela alguma aqui, apenas um vitral na parede, que deixa entrever a claridade da tarde. 

    Não sei que lugar é este. Definitivamente, não é o meu quarto, embora se pareça com um onde já estive. Flores enfeitam um canto do cômodo, e minha cama é bem confortável. Mas não sei onde estou. Sinto-me como a protagonista de um daqueles filmes em que a pessoa é dopada, sequestrada, e desperta no cárcere, enclausurada por alguma espécie de psicopata. Estou num cômodo quase vazio, sem janelas, e com uma pequena escada que conduz a uma porta fechada. 

    – Tem alguém aí? – tateio a porta em busca de respostas, mas o silêncio parece ser o meu único companheiro aqui. De qualquer forma, até os psicopatas sabem que as pessoas sentem fome, então daqui a pouco alguém deve vir depositar um prato com algo para eu comer. Fora a ausência de qualquer ruído, isso aqui se parece com a cela de uma solitária. Apesar de minha desorientação, imagino que não deva ter sido presa, pois não costumo fazer nada de condenável. Olho em volta, mas não tenho algo com que bater na porta para chamar a atenção. Lembro-me daquelas cenas em que os prisioneiros começam a raspar as canecas nas grades da cela, até que alguém os venha escutar. Não tenho canecas, tampouco minha cela possui grades.

    – Ei! Alguém! – grito, em tom de brincadeira, embora tenha medo do que possa surgir em resposta ao meu chamado. 

    Deitada em um canto do cômodo, tateio os bolsos em busca do meu celular. Em vão. Devo tê-lo perdido. Ou o psicopata que me trancou aqui se apoderou dele, para impossibilitar qualquer pedido de socorro.

    Sinto muito frio, e o cansaço começa a tomar conta de mim. Amanhã explorarei este lugar.


 

Segundo dia

 

    Acordei hoje com um bolo no estômago, meio enjoada, como costuma acontecer sempre que estou deprimida. Quando era nova, pensava que a depressão atingia seu ponto mais crítico na madrugada, mas o tempo me mostrou que, nos dias perigosos, eu já acordo assim. No início, atribuía isso a algum sonho ruim, mas depois soube que a oscilação de humor tinha a ver com as taxas de serotonina no cérebro. Portanto, nada tinha a ver com os mistérios da noite ou com algum pesadelo que eu tivesse tido. 

    Penso em tudo isso porque acordei assim, com essa sensação abominável e tão conhecida. Independentemente disso, tenho quase certeza de que sonhei com algo estranho. Sim, foi isso. Sonhei novamente com aquela casa imensa, que, nos meus sonhos, eu sei que é minha, embora na realidade eu nunca tenha estado lá. É uma casa enorme, mas extremamente mal dividida, com cômodos que desembocam uns nos outros, e cujo acesso se dá somente pelas janelas. Há uma parte da casa decorada em tons sombrios, com móveis pesados, de madeira escura, e outra com cômodos arejados, em tons de branco e verde-claro. Um prato cheio para um terapeuta. Mas o que essa casa tinha de peculiar também a fazia íntima, e tantas foram as vezes em que me vi dentro dela nos sonhos, que a sensação de reconhecimento era vívida. Havia uma espécie de sala cujas paredes tinham um painel todo em verde e branco, em diferentes tons, num desenho cheio de plantas e flores parecido com esses livros de colorir que estão na moda. É estranha e, ao mesmo tempo, tão familiar. 

    Tenho consciência de que estou na zona de conforto de tentar passar o tempo perdida em considerações para protelar a exploração deste lugar. Ninguém me trouxe comida, e começo a pensar que vou morrer de inanição.

    Ouço pássaros cantando lá fora e ainda está claro aqui dentro, embora eu não veja por onde essa claridade possa entrar. O vitral é pequeno e fica na lateral. Subo as escadas e esmurro a porta que impede o meu acesso ao resto da casa, mas ninguém vem em resposta. As flores do jarro começam a abrir, e não entendo que alguém seja capaz de me trazer flores em vez de algo para comer. Um tom poético em meio ao turbilhão de dúvidas que me assola.

    O relógio marca as mesmas duas e dez. Antes de me imaginar em um daqueles filmes de qualidade duvidosa em que o personagem fica preso no espaço-tempo, condenado a repetir o mesmo dia à exaustão, agito o relógio perto do ouvido e constato, aborrecida, que ele está quebrado. Os ponteiros estão alinhados à direita, no balé sincronizado que os une. Sempre gostei das horas em que eles se encontram, e o ângulo formado pelo horário de duas e dez parece-me particularmente belo. Ganhei-o de presente do meu ex-marido, na nossa lua de mel, e talvez tenha sido, além de nossa filha, a única coisa de valor que ele me trouxe. Rio sozinha, lembrando-me da cantiga de roda que falava de um anel que era de vidro e se tinha quebrado e do amor que, pouco, também se acabara. Conosco, não. O amor se tinha ido ao passar das horas, mas o relógio resistira. Até hoje. O vidro do mostrador está levemente trincado. Talvez eu o tenha quebrado ao esmurrar a porta lá em cima, e o vidro, rachado, esteja pressionando os ponteiros, impedindo-os de se moverem. Percebo que o dos minutos pesa sobre o das horas, oprimindo-o, e já não acho isso tão belo. Constato que minutos podem ser mais poderosos do que horas. A sensação de fome me traz uma letargia conveniente. Evito me mexer, para economizar energia. Decido aguardar mais um pouco.



 

Terceiro dia

 

    Acordei há pouco, e resisto ao impulso de verificar que horas são. Minhas horas, partidas há três dias, são sempre as mesmas. Prisioneira das duas e dez. Desisti de comer, e a fome parece ter cessado. A sede, contudo, transforma o desejo de encontrar água em uma ideia fixa. Não paro de pensar nisso. Minha boca está seca. Ouço ruídos no andar de cima, mas resisto ao impulso de gritar. Quem me trancou nesse calabouço sabe que estou aqui. Não quero me arriscar a ressecar a garganta e aumentar minha sede. 

    Os ruídos cessaram. Exploro a porta situada acima da escada, mas está, definitivamente, trancada. Li certa vez que a pessoa pode resistir até oito semanas sem comer, mas precisa ingerir líquidos. A desidratação faz o organismo entrar em choque após cinco dias sem água, sendo que antes disso já fica significativamente debilitado. Num instinto insano de sobrevivência, bebo sofregamente a água do vaso de flores, que hoje já estão murchas. Ela está com um pouco de limo, meio viscosa, mas tento não respirar para não sentir o gosto. Vomitar aqui seria catastrófico. Percebo o quanto minha frescura diminuiu ao longo dos últimos dias. Aguardo o dia de amanhã.




 

Quarto dia

 

    Adormeci à espera do meu algoz, que, definitivamente, deve ter algum plano macabro para me assassinar. Sei que ele esteve aqui mais cedo, pois as flores do vaso que fica próximo à minha cama foram trocadas.

    Tive outro sonho inquietante. Uma onda gigantesca, que aparece para tragar tudo. Tenho esse sonho desde criança, muito antes de se falar em tsunami. Sonho que estou em uma praia deserta, com mar calmo, e, repentinamente, no horizonte, começa a se formar algo que sei que será uma onda gigante. Antes mesmo que ela se aproxime, eu já posso pressentir o estrago trazido por sua vinda. À medida que ela se vai armando, como uma serpente que se enrodilha preparando o bote, começo a perder a visão do horizonte, tamanha a altura dessa onda. Saio correndo e gritando, mas ela sempre me vence, e acordo no exato momento em que vai me atingir.

    Preciso dormir novamente, voltar para o sonho e enfrentar a onda. Dizem que os sonhos são projeções de nossos medos e desejos. Se essa onda é o meu inimigo mais temível – não falo do psicopata, porque ainda não apareceu para fazer nada comigo, então não deve ser violento –, vou enfrentá-la de uma vez por todas. 



 

Quinto dia

 

    Acabo de acordar. Ouço o ruído da chuva, que fustiga o telhado desta casa. A janela do andar de cima deve estar aberta, pois ouvi um barulho ali agora há pouco. O vaso de flores foi reposto, e alguns botões enfeitam o meu cativeiro. De algum modo, meu sequestrador sabe o meu horário de sono, pois só vem quando não estou acordada. Talvez ele me vigie a distância, embora eu não consiga imaginar onde ele poderia esconder uma câmera aqui. Os botões de rosas amarelas – eu odeio amarelo – parecem me olhar, e começo a conversar com eles. Se quando conseguir escapar daqui eu já tiver enlouquecido, pelo menos já estarei de certa forma acostumada à cela do manicômio. Ou, se eu conseguir matar quem me colocou aqui, também já estarei acostumada à clausura da prisão. Se bem que posso alegar legítima defesa. Preciso rascunhar minha defesa enquanto tenho sanidade. Mas não vejo papel ou caneta aqui. Querido Diário, escrevo mentalmente, e desato a rir. Decerto enlouqueci.

    Fecho os olhos, lembrando-me de quando a minha mãe me pegava no colo. Eu era então ainda um bebê, mas esticava o corpinho todo, como que para usufruir daquele abraço, sempre tão reconfortante. Mas os braços não se parecem com os da mamãe. Encolho-me, com medo. Não. Vejo agora que são os do Marcos, meu primeiro namorado, forte e robusto, que me abraçava tão intensamente que parecia querer me esmagar. Será que estou delirando? 

    Alguém me segura com força agora, mas não é mais o Marcos. Na verdade, são duas mulheres, e o cheiro que me invade as narinas é inconfundivelmente o de um hospital. Revivo o dia em que entrei em coma alcoólico, resultado de uma desastrosa experiência adolescente. Lembro-me de adorar a sensação de leveza propiciada pela bebida. Nem sei quando parei de beber naquela festa, mas a sensação de acordar desorientada no hospital e com a boca seca foi inesquecível.

    Acho que estou recordando tudo isso porque acordei novamente com a boca seca. Olho, maliciosa, para as rosas amarelas. Ainda bem. Se fossem vermelhas, talvez eu sentisse pena delas. Bebo impiedosamente a sua água, e rio, triunfante. Ao vencedor, a água. Eram elas ou eu. Se acordar com fome, talvez eu faça uma salada com elas, e isso me dê forças para suportar mais um dia. Um bom momento para me tornar vegetariana, um projeto sempre adiado.



 

Sexto dia

   

    A cada dia que passa me apercebo de mais detalhes daqui. Meus olhos acostumam-se à precária luminosidade do lugar, e começo a pensar se a realidade não é a vida aqui nesta clausura em vez da que eu tinha no mundo lá fora. Sinto-me numa espécie de caverna platônica às avessas, e meu conhecimento se expande à medida que me habituo a esta cela. Quem é o prisioneiro, afinal? Aquele que, privado do convívio com o mundo exterior, tem tempo e concentração para atingir pequenas centelhas de entendimento, epifanias da existência, ou aquele que, livre para ir e vir, se perde em meio a um cotidiano capaz de lhe diluir as reflexões?

    Certa vez, numa viagem longa, passei tanto tempo em um mesmo hotel, que, ao voltar para casa, ia sempre em direção ao armário quando acordava na madrugada para usar o banheiro, acostumada à sua localização no quarto do hotel. Familiaridade e estranheza talvez tenham mais a ver com tempo do que com afeto ou pertença. Temo me acostumar tanto a este espaço que um dia eu chegue a sentir falta deste maldito cativeiro.

    Risco mentalmente a palavra maldito. Começo a gostar daqui.



 

Sétimo dia

 

    Acordo, à mesma hora de sempre: duas e dez da tarde, como marca o velho relógio. Sei que está quebrado, mas isso já não faz diferença. Permaneço deitada, pois a prostração começa a me invadir. 

    Percebo uma pequena claraboia no teto, em formato de abóbada. Não a tinha notado até então. Deve ser de lá que vem a claridade que me dá a certeza de que estamos quase no meio da tarde. Conheço o cheiro da manhã. O da tarde é mais pesado, quase opressivo. Ao lado do vitral, há um crucifixo pendurado. Grande, rústico, de madeira escura. Nunca fui religiosa, e não consigo imaginar um psicopata cristão. Em seguida, penso em tudo o que já foi feito em nome da fé ao longo dos tempos e retiro o pensamento. Meu assassino em série é cristão e paciente. É bom que apareça logo, pois corre o risco de ser atacado por mim antes de ter a chance de me dominar.

    Estou exausta de esperar. Nos filmes, o suspense já teria sido quebrado. A revelação de quem me capturou demora mais do que o razoável, e sinto-me enfraquecer. Comparo-me aos cachorros da experiência. Não os de Pavlov, sortudos que salivavam por condicionamento antes de serem alimentados. Eu, em estado de inanição, não tenho por que salivar. Refiro-me a outros, aos cães que eram colocados em uma sala projetada para aplicar choques a partir do chão. Quando o piso de um lado da sala começava a dar choque nos animais, eles imediatamente corriam para o outro lado, para fugir da dor. Quando o processo se invertia e o lado em que eles estavam passava a emitir choques, eles refugiavam-se no outro, e assim sucessivamente, até o momento em que os choques vinham, indistinta e aleatoriamente, de ambos os lados da sala. Depois de um tempo, eles sequer tentavam mudar de lado, pois sabiam que seria inútil, e entregavam-se ao suplício, sem esboçar reação. Essa imagem, que sempre me impressionou, nunca me pareceu tão adequada. Entrego-me aos choques, venham de onde vierem.

    A imagem dos cãezinhos eletrocutados traz-me à lembrança meu cachorro de estimação, um que tive na infância. Caminho até a janela, e o ouço latir ali, bem perto da porta, além daquela inconfundível fungada que eles dão ao farejar algo. Duas fungadas, seguidas de um espirro. Ah, que saudade! O latido é o dele, tenho certeza. Grito alegremente seu nome, esquecendo-me de que devia repreendê-lo. Ele bem que merece um castigo, aquele cãozinho travesso, mas nunca consegui discipliná-lo. Sempre que o chamava para dar uma bronca, invariavelmente acabava brincando com ele e passando a mão em seu focinho, mesmo sabendo que isso o deixaria ainda mais agitado e brincalhão. Chamo-o mais uma vez, mas me lembro da terra fofa e macia onde o meu pai o enterrou, há muitos anos. Desisto de gritar e torço, sinceramente, para que o meu algoz acabe logo com essa agonia. Sinto-me definhar nesta prisão. Dormirei agora. O tédio faz com que eu me sinta mais sonolenta a cada dia, e temo pelo dia em que não mais acordarei. Pela primeira vez em quase uma semana, não tenho planos para amanhã.

 

...

 

    Avó e neta conversam, a caminho da igreja.

    – Vó, como saberemos se ela está bem? Eu ainda não me conformo. Eu sei que só se passaram sete dias, mas ainda tenho a sensação de que é tudo um sonho.

    – Se você se sentir melhor, podemos ir lá visitá-la. O que você acha?

    – Ah, eu quero, sim, vó. Talvez isso ajude. Ainda não entendo como tudo aconteceu.

    – Ninguém sabe, e a estrada não tem câmeras naquele trecho. O que ajudou a determinar a hora foi o relógio, que se quebrou no acidente.

    – Achei boa a sua ideia de o deixarmos com ela – a moça deu um sorriso triste. – Mamãe adorava aquele relógio.

    – Olha, podemos comprar as flores ali, depois da missa. Aquelas rosas estão lindas, veja! Ontem mesmo comprei umas iguais àquelas.

    – Amarelas, vó?! Esqueceu que a mamãe odiava amarelo?

 
 

Tatiana Alves

É escritora, doutora em Letras,

com pesquisa sobre a representação

do feminino na literatura

Instagram:

@tatiana.alves.rj

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