Prosa 1
Através da Casa
Já escrevi que eu era minha casa. Que casa era um sentimento. Já me senti assim, ocupando com amplitude o espaço do meu corpo. Eu viajava muito, em toda oportunidade que tinha estava em algum lugar novo. Carregava essa casa comigo pra todo canto, sentia um prazer de boca cheia em andar por aí e me sentir confortável na minha existência em qualquer idioma, em abrigos, exílios e encruzilhadas. Arrebatada pelas possibilidades, eu seguia, e seguia, e seguia. Vivi um monte de desencontros, desencantos, perda de hora, mal entendidos. Claro, como não? pois se o deslocar-se é justamente sobre isso. Mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, insistia em me colocar no mundo desse jeito.
Verdade seja dita, eu sempre estive escrevendo. Tenho diários e mais diários de notas avulsas, aparentemente desconexas, que tomava em viagens. Há escritos como a estrada é o Destino e não existe nóia, é tudo intuição. Não me lembro em que estava pensando quando escrevi essas coisas, mas me lembro por onde estava passando. A primeira, numa pirambeira na Guatemala, uma estrada sinuosa e muito alta. A segunda, na rodoviária em uma cidadezinha em Oaxaca, no México. Apoiava meu caderno no joelho dobrado e largava ali minhas impressões, notas, rabiscos. Assim fui construindo um legado de memórias de viagem, em papel, para mim mesma.
Naqueles tempos eu tentava passar os réveillon em um novo lugar a cada ano. O que o ano novo guarda, com seu ritual efusivo de boas-vindas, tem algo em comum com a surpresa de um novo pouso. E aí chegou um ano de surpresas dificílimas. 2020 foi um susto maldito. Não há outro jeito de colocar isso. A pandemia de covid-19 começou oficialmente no Brasil na mesma semana em que eu voltava, com meu recém-marido, do Alagoas para casa, em Minas Gerais. Foi uma boa despedida das estradas, digna, farta de feijão branco e praias azulíssimas. 2021 entrou e assisti da sacada de casa, de onde vi também todo o resto do ano passar. Nesse período, escrevi para sobreviver. Escrevia sempre que dava. Não podia encontrar minhas amigas, família, colegas de trabalho. Então comecei a escrever textos mais e mais longos. Assim, pelo menos, algo saía.
Foi também nessa época que a Casa passou a existir como uma Coisa. Rígida, intimidadora, inegociável como uma jaula. Mas também segura, protetora e acolhedora como uma concha. Foi imposta uma pausa sobre as andanças, uma que ninguém queria fazer mas que, pelo coletivo, fizemos. Se até então eu havia desfrutado da vida do lado de fora, do que é público e do Outro, agora era o coletivo que se impunha sobre a Casa.
O Outro, agora, penetrava a vida interior. E aí, bom, antes mesmo de me adaptar a esse novo conceito, a essa nova dinâmica de Casa, outra mudança já se anunciava: um bebê chegaria no futuro próximo. Na verdade, é a primeira vez que consigo me sentar e escrever um texto que se desdobra em mais de uma ideia. É a primeira vez que consigo organizar esses acontecimentos em palavras.
Porque as mães não sentem, logo, não escrevem. As mães não criam arte, só pessoas. Elas não têm espaço próprio dentro de casa. As mães, elas não podem ir ao banheiro sozinhas. Não podem curtir um domingo de ressaca. As mães são a imagem última da domesticação. Nos chamam leoas, feras, guerreiras, mas desde que nos mantenhamos em silêncio. Sem reclamar, sem falar da frustração, da saudade de si, do luto. A espiral é gravidez-parto-amamentação e não há uma brecha sequer, uma pausa sequer para um descanso, um respiro. Nem mesmo um suspiro, que denuncia a exaustão. A mulher dá lugar à mãe e a mãe se torna sua única identidade. As mães não podem criar arte, nem criar a si mesmas enquanto mulheres.
Mas a gente aprendeu a resistir no mundo público, aquele onde reinam os homens. Então a gente tenta se infiltrar também nos capilares da vida doméstica e, talvez, implodi-la. E dos restos, fazer brotar na mãe uma mulher. E talvez essa mulher possa viajar. Ou talvez não se interesse tanto por isso mais. Talvez ela queira publicar livros. Talvez queira pintar o cabelo todo mês. Talvez mergulhe fundo na análise. Talvez busque furiosamente uma identidade para si. Onde der, como der, quando der.
Eu, por exemplo, escrevi esse texto entre mamadas. Saco o celular do bolso, abro o bloco de notas e escrevo quando dá, entre as infinitas demandas de um bebê de seis meses. Assim, ando pela Casa plantando bombinhas na domesticação e na maternidade, furando-as e colocando nos buraquinhos pequenas sementinhas de mim – minhas memórias de viagens, minhas saudades e sonhos, meus restos que já não reconheço e em cujos DNAs talvez possa irromper uma Mulher que atravesse a mãe.
Mariana Pio
É escritora, oraculista e tatuadora.
Manifesta criações sobre temas do Mistério
e da ancestralidade feminina.
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