Prosa 1
Anjo dourado
Pela janela vejo fumaça, vejo pessoas
Na rua os carros, no céu o sol e a chuva
(Ira, tarde vazia)
Tenho o hábito de tirar uma hora todas as manhas para leitura e meditação. Levo minha filha na escola, faço café e me entrego a esse momento antes de ir para a academia e retornar para ser engolida pelos afazeres do dia. E me pergunto o porquê de deixar a janela tão acortinada o dia todo, mesmo amando o ressoar da música natural que vem de fora.
Acabo rindo porque nem sempre a visão lá de fora é apenas fumaça, carro e pessoas, nem só o sol e a chuva. Quando vejo nem consigo meditar, só ler. Os afazeres da vida nos engolem, assim como distrações vis. Percebo o quanto o tempo tem escapado entre meus dedos quando chega a noite. Aí lembro, que infelizmente, a noite não é possível ver o esplendor que minha janela, nesta época em especifico, tem a me oferecer, ali singelo na rua de chão, sem calçamento, algo que aguardo ansiosamente para ver nos últimos cinco anos.
Ai penso, “amanhã sem falta”, ou então “logo não terá mais nada para ver”. Depois de quatro manhãs, essa em especifico, não li como de costume, parei ao lado da janela, no meu cantinho de alma, onde busco meus silêncios, onde me ouço diante do reflexo que vem de fora. Faz umas duas semanas que venho observando corriqueiramente, sem a devida atenção que merece, a árvore do vizinho. Certa manhã, meu peito encheu-se de regozijo ao ver seus galhos, antes tão secos, hibernados, estarem repletos de brotos verdinhos. Até brinquei com uma amiga outro dia, que a primavera estava se demorando. Estaria ela desiludida de amor e mergulhou no inverno. Ou o inverno a estaria oprimindo. A verdade é que ela veio acordando de mansinho, lançando sinais para olhos sensíveis e atentos, que conseguem desacelerar diante das delicadezas da vida. Ela estava chegando em outubro.
A cada manhã, nas minhas olhadas rápidas, percebia os brotos se desenvolverem sob a cantoria dos pássaros, sob o calor do sol e as carícias do vento. Com o tempo, deixaram a timidez de lado e embalaram na melodia, suas folhas cresceram em botões. O canto dos pássaros se avivava a cada dia, a cada pequeno afloramento. Os bem-te-vis, quero-queros, os canários-da-terra, o suiriri, a sabiá-laranjeira, uma verdadeira orquestra, com ritmos e sons próprios, avivando em seus ninhos. Outros sobre os fios do poste, alternando o pouso para ficarem de guarda sobre ele. No centro da cidade, sob os ruídos da vida agitada ainda existe beleza. Quando a natureza quer, nada pode ofuscar seu espetáculo, esse que meus olhos fotografam e meus ouvidos guardam em meus silêncios e preenche meus dias de calmaria.
Hoje acordei preguiçosa, pensei em ficar mais tempo na cama, mas adoro ter um pouco de silêncio na casa só para mim, por isso lancei meu corpo para fora da cama. Os pássaros agitavam-se lá fora, era o chamado para o concerto matinal. Desci, fiz um café perfumado e, munida da caneca quentinha do líquido tão fresco quanto a manhã, segui ao meu aconchego e desta vez abri a cortina, e lá estava o verdadeiro vislumbre. Entendi o alvoroço da passarinhada. Também pudera, o céu de um azul incandescente. As árvores se impunham diante dele, altivas para absorver seu calor e nos honrar com oxigênio. Os pássaros se aviltavam no ar, nos postes, alguns retornavam aos ninhos, estes barulhentos das crias famintas. Levavam a comida e também a novidade. Era como se lhes dissesse, comam, cresçam e aprendam a voar para contemplar a primavera. Vamos fazer parte desta orquestra que poucos ouvidos absorvem, que poucos olhos contemplam.
Ah! Esses meus olhos praticamente entraram em estado de gozo. O protagonista dessa manhã revelava num amarelo celestial, ele floresceu como um anjo que abre suas asas. Uma sensação indescritível visitou meu corpo, uma energia de amor, ao vislumbrar a pequena árvore, tão robusta de si, há uns 10 metros de mim, em frente à singela casa de madeira desgastada do vizinho.
Abri a janela. A vista do segundo andar era panorâmica, lá embaixo o muro alto ofusca tudo lá fora. Deixei a brisa fresca me cumprimentar, pude ouvi melhor os pássaros que continuavam em serenatas. O pequeno ipê se agitava com o vento, e um tapete de pétalas delicadas se formava sobre o gramado em volta dele. Tive vontade de ir lá e deitar-me sobre aquela moldura dourada e vestir-me de ipê.
Vi abelhas visitando suas flores, aos montes, sem pressa, como uma romaria, iam dando beijos nas flores, uma a uma. Vi também uma outra parente da abelha, a mangava. Ela se destoava entre as flores, por sua negritude e tamanho. Também as beijava e era visível ver em seu corpo, na despedida, o manto de polem recebido de presente.
Debrucei-me na janela. Tomei meu café gole a gole, aproveitei cada segundo, de certa forma meditei, porque fiquei a observar aquela sintonia perfeita sem pensar em mais nada. E por falar em sintonia, depois percebi a sincronia, o café aquecia o meu corpo e o momento acalmava-me a alma. O café acabou, as abelhas e mangavas continuavam a peregrinação. Pouca gente para ver essa tarefa delicada, minuciosa da natureza.
Ouvi os ruídos vindos do quarto do pequeno agitador da casa, voltei para mim. Ainda estava de pijama. Era hora de trocar de roupa. Estava decidida, iria me vestir de primavera e sair para o parque passarinhar com meu filho….
E mesmo que o tempo e o vento levem as flores embora e essa majestade embora, para mim, ele continuará a ser meu anjo dourado.
Adeneri Nogueira de Borba
É Pedagoga, Mestra em Educação,
atualmente se dedica a família.
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@adeneri_borba