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Prosa 2

Andorinha Solitária

    Clarinha é uma daquelas mulheres que de vez em quando Deus faz e, distraído, joga a fórmula.  O chiste foi criado para ela como um axioma. Sorriso sincero, olhar honesto. Veio de uma cidadezinha do interior de Minas, que por estar debaixo da barriga da Bahia, parecia um feto seco. Nada nascia, por mais carinhos que se fizesse nas sementes e por mais que se enchessem os ouvidos dos santos de tanta oração. Preferia a ação à oração. 

    Chegando à rodoviária do Tietê, em São Paulo, conheceu um português que vendia cachorro quente e vendo aquela covinha infantil no queixo, pensou: nesta cova vou enterrar não o corpo, mas até a alma. Caiu de amores pela cidade e pelo homem. Casaram-se só no cartório, depois fariam as coisas como Deus queria. Ele quer, mas os padres cobram muito caro. 

E o seu barraco era de alvenaria! Caprichosa, passava no cemitério para levar as flores dos defuntos frescos e enfeitar a casa que era asseada como ela e o Vasco. Quando a grana estava curta, não tinha dúvida: levava os frangos das macumbas que Mãe Clementina fazia de sexta nas encruzilhadas e a pinga para uma caipirinha. O fim de semana era regado à macumba. Vasco comia morrendo de medo. 

    Ela num sorriso estonteante lhe dizia, que:

    — Galinha é galinha, não importa a procedência. O destino é  o mesmo: a panela. E ainda, dou um pouco de canja para as crianças do viaduto. Os mortos precisam de orações, Vasco, e as crianças de pães.

    Ele a agarrando por trás e já passando a mão, sorria:

    — E tu precisas parar de rimar. Pareces mais repentista nordestina que uma mineira, pá! 

   

    E a vida passava atenciosa e calma como se admirasse uma roupa na vitrine. Aprendeu a fazer adesivos, tipo “Deus é fiel”; “Propriedade de Jesus” etc., e chamava as vizinhas da favela para venderem nos semáforos. Dava uma boa grana. Pagava a mulherada que tinha, em média, quatro ou mais filhos que levavam junto. Além de não ficarem sozinhos, isso ajudava a comprar a compaixão alheia. Eram cédulas miúdas e moedas, mas certas. 

    Ela um dia teria o seu, mas apenas um só para fazer jus ao “crescei e multiplicai” que Cristo tinha estabelecido e também porque o Vasco insistia, mas só quando a poupança que abriu para o rebento já estivesse bem crescida. Morria de pena daquelas crianças pedindo para janelas de vidros escuros levantados. Às vezes, eram afastados com um palavrão. 

Os motoristas nem se incomodavam com o frio e a fome que massacravam os pequenos, enquanto faziam carinhos nos seus cães perfumados. Hoje em dia vale mais a pena ser um cachorrinho de madame. E seu pimpolho seria diferente. Estudaria em escola particular e jamais levaria o pequeno para o psiquia... Não, acho que é pediatra... 

    Será que isso não é médico de pé do SUS? Bom, ia para o médico particular de crianças, pois a primeira providência será um plano de saúde, que é caro para chuchu. E, munida desses pensamentos, arrumava mais um bico para fazer e engordar a poupança do filho. Soube que na Igreja Evangélica distribuíam cestas básicas depois dos sermões e, claro, não antes de recolher o dízimo. 

    Procurou o Pastor e se mostrando a mais fiel irmã do mundo, recolhia o donativo, onde enfiava parte nos sutiãs enormes que comprou para tal fim. O que Deus ia fazer com dinheiro? Não tinha a mínima intenção de comprar um terreno no céu, mas na terra. Quando morresse, pensaria no assunto. Além da cesta, assegurava a condução do Vasco e comprava alguma coisa para as vizinhas mais necessitadas. 

    Quitava assim, um improvável pecado. Na Igreja do Pe. João, conversando com as fiéis que prometiam algo para o Santo Expedito, negociava as feituras das faixas de agradecimento. 

    E olhem que o Santo, pelo menos em São Paulo, é mais popular do que qualquer político à cata de votos. É faixa que não acaba mais. E sempre comprava alguma coisa para distribuir entre as crianças. Sentia-se uma Robin Wood. A mãe a ensinou que se dividisse o pouco que tinha, jamais seria uma andorinha solitária. 

    Voaria em bando, com aquela distância milimetricamente entre elas, mas nunca estaria sozinha. Tinha medo da solidão. Gostava de gente. Gostava de dançar na bodega do Paulo até altas horas, roçando-se ao sexo do marido e se deliciando quando ele, roxo de excitação, implorava para irem pra casa. Mas, em uma daquelas enchentes que assolam São Paulo no verão, o Vasco perdeu o seu ganha-pão: o carrinho de cachorro quente foi tragado pela fúria de Deus, tal era o ruído dos trovões e o aguaceiro bravio. 

    Assim, via o marido sair para procurar emprego e engrossar filas. Várias fábricas estavam se estabelecendo no Nordeste do país, porque os estados ofereciam isenção de impostos e com isso; enquanto as coisas melhoravam por lá, iam ficando pretas por aqui. O Vasco só sabia trabalhar por conta própria, desde que chegou de Lisboa.  

Chegava cada dia mais tarde em casa, com uma tristeza de dar dó em qualquer mortal. Várias vezes, ela acordava no meio da madrugada e ele já estava recortando anúncio no jornal. Nem amor faziam mais. Ela ficava triste também, coisa que não admitia. Nasceu pra ser feliz e seria, nem que fosse na marra. E sempre pensava em algo mais para fazer e cobrir a falta do dinheiro do marido, sem que ferisse seus brios. Discretamente, colocava algum no seu bolso para que não precisasse lhe pedir. 

    E em um dia que a madame, patroa da vizinha do barraco 15, daria uma recepção para duzentos convidados; enfiou dois comprimidos de Lacto Purga no suco oferecido à vizinha, e foi substituir a coitada que estava com dor de barriga. Seu maior sonho era conhecer aquela mansão dos deuses. Madame era famosa pela sua bondade no pagamento e, distribuía entre os empregados, o que sobrava da festa. Ela dividiria com a vizinha que ainda agradeceu aos montes. Não deixaria os três filhos sozinhos. 

    Que Deus a abençoe! Benzeu-se três vezes com remorso pela farsa, mas...Como dizia a sábia mãe: “cada qual com seu ‘cadinho!” Deu a maior sorte. Entre os convidados, estava um homem que era dono de uma fábrica de roupas e ela, entre um canapé e outro servido com muito esmero, perguntou com seu sorriso adorável se não precisava de uma excelente costureira. 

    Aprendeu a costurar olhando as outras mulheres, pois nunca tinha sequer enfiado uma linha na máquina. Era observadora e boa vontade não lhe faltava, explicava para a colega que diante da promessa de uma pequena comissão, ensinava-lhe sem que a Chefe da seção percebesse. Fazia faxinas aos sábados e até aos domingos, pois era boa demais nisso e as madames gostavam. 

    Já estava no emprego da fábrica há oito meses quando soube que dispensariam várias costureiras e, provavelmente, as mais recentes. Clarinha ficou a noite inteira sem dormir, procurando uma solução, pois para tudo se dá um jeito. Na manhã seguinte, sem titubear, enfiou a mão debaixo da máquina que cortava as peças jeans e cortou o dedo indicador da mão direita. 

    Canhota, aquele dedo não faria falta, pensou quase esquecendo a dor. Que importância tem o indicador de pobre? Ia indicar o quê? E apontar pra onde? Mas, não poderia ser dispensada depois do acidente. Ficou recebendo pela Caixa; afastada temporariamente, e ainda recebeu a indenização que serviu para comprar do invasor o barraco que alugavam. 

    Era um barraco, mas um dia seria um apartamento, por que não? E com escritura lavrada em cartório num terreno legal. Quiçá, um sobradinho com lavabo na sala, uma escada em caracol e três suítes em cima intermediados por uma saleta íntima. Achava aquilo o máximo! O importante era ter sobre a cabeça um teto para acolher os pensamentos vadios e sob os pés o chão para andar caminhos certos. 

    Enquanto não ia à fábrica, aproveitava para dar os seus pequenos golpes. Voltou à Igreja Evangélica; colhia flores funerárias para casa e vendia algumas nos cemitérios afastados. Ah, só não dizia ao Vasco que os frangos eram da macumba de Mãe Clementina. Ele achava que seu azar era por causa disso. 

Ficou felicíssima quando leu em um jornal que alguém estava procurando um doador de rim e, ficou mais feliz ainda, quando soube que qualquer ser humano pode sobreviver com apenas um. Aquilo só podia ser uma piada de Deus. Para que dar dois, se só precisamos de um? Só podia ser para o pobre negociar o outro. Aí, rezou agradecendo a bondade divina. 

    Fez os testes e foi aprovada. Já pagara o barraco com o dedo, agora garantiria o futuro do filho com o rim. Agora entendia o “Deus escreve certo por linhas tortas”. E que São Paulo é a cidade das oportunidades. Só naquela imensidão incógnita qualquer um podia negociar o que quisesse, até o próprio corpo e não necessariamente para a prostituição. 

    Um dia, o Vasco entrou em casa com uma passagem aérea nas mãos. Voltaria para Portugal, depois mandava a passagem para ela. Decepcionada, mas peremptória, retorquiu:

    — Nunca! O meu lugar é aqui. Vou vencer. Se quiser fugir, a porta da rua é a serventia da casa. E, se mal lhe pergunto, onde arrumou o dinheiro da passagem? 

    Vasco abrindo uma latinha de cerveja: 

    — Sua assinatura é fácil, pá, tirei o dinheiro da poupança. 

    Clarinha sentiu no peito uma dor que mal conseguiu chegar à cadeira. Era como se não só uma espinha de peixe estivesse encravada na garganta, mas uma cartilagem inteira do esqueleto pisciano. Abriu a porta da casa e jogou todos os pertences do marido na rua. Ele a roubou. Ele implorou, mas ela apenas fulminava o aturdido marido com seus lindos olhos verdes sem nenhuma lágrima. Estavam secos como a sua terra natal. 

    Nem a dor que sentiu quando cortou o dedo para ajudá-lo, doeu mais que essa desilusão. Ela estava cansada de ver as vizinhas com os filhos para criar, porque o marido tinha caído fora. Homem não aguenta filho chorando e mulher reclamando de falta do que pôr na mesa. Ria ao ouvir isso, pois o seu Vasco era diferente. Íntegro. Estava explicado porque os apartamentos populares eram todos em nome das mulheres. Só elas se encarceram com os filhos depois da dupla jornada de trabalho. 

    Quando os maridos chegavam exauridos, já vinham com a cara cheia da pinga barata. Só as enxergavam quando precisavam desafogar alguns semens bêbados e as usavam como os animais. Depois, elas se viravam para o outro lado da cama e dormiam sonhos em preto e branco. Até uma traição carnal Clarinha perdoaria do marido, porque isso é coisa da fragilidade humana, mas a falta de moral, não. Isso a gente não recupera. 

    Agora, ele estava ali, como um fracote qualquer, que diante da primeira dificuldade, foge. Se teve a coragem para falsificar a sua assinatura, que “era fácil”, roubaria qualquer trabalhador honesto, porque foi isso que fizera. Era um malsão sem pudor. Arrancara não o dinheiro de sua poupança, mas o futuro do filho que já estava dentro dela e que não tivera tempo para dizer. 

    Precisava confirmação médica do Posto de Saúde cuja consulta era marcada com dois meses de antecipação. Quando chegasse sua vez, talvez o filho já estivesse até batizado. Ela jamais diria para aquele rascunho de homem que estava de barriga cheia. Aquele filho era só seu. Há um ano, lutava pelos dois. E ele arrancou todas essas boas recordações como se arrancasse uma erva daninha de uma plantação. 

    Tinha comido as suas galinhas macubentas; as suas cestas básicas; usado o dízimo da Igreja, sugado as suas horas de trabalho pesado nas faxinas. Que falta faria? Estava com depressão, dizia. E ela? Mesmo cansada, perfumava-se de alfazema e lhe abria os braços. Tornara-se uma andorinha solitária e agora, ferida. 

    Afastou com um movimento de cabeça esse fúnebre pensamento. Agora, lutaria só por ela e pelo filho. Trancou a porta do barraco e do coração e abraçando a barriga, desrepresou como uma hidrelétrica a sua dor. Dessa hidrelétrica, geraria a luz que daria ao seu filho. 

    No dia seguinte, contou ao defunto mais fresco sua tristeza, enquanto colhia as flores que agora; mais do que nunca precisaria para enfeitar sua casa e sua vida; enfim, entre uma oração para o morto e outra para si mesma; pensou que a vida seguiria seu curso e seu voo de andorinha, embora com as asas feridas, teria que continuar e em bando.

    Com passos decididos, atravessou a nave da Igreja para mais uma negociação com as beatas sequiosas das dádivas de Santo Expedito; olhou para o sutiã, onde o generoso dízimo de quem compraria um terreno no céu já estava garantido; apalpou a sacola do ombro, onde a cesta básica descansava e, a galinha, orgulhosa de ser alimento para vivos, aguardava para virar canja.

    Acompanhada de seus sonhos e do filho que já escutava os seus planos para o futuro; adentrou-se e exultou, acariciando na imaginação o rostinho em sua barriga.  Adivinhava-lhe o sorriso e venceria quaisquer intempéries por ele. Clarinha Almeida, solitária?! Jamais! Nasceu para ser líder. Nasceu para ser respeitada. Não derramaria mais uma lágrima sequer. 

    Tornar-se-ia árida como a terra em que nasceu, mas dela nasceriam várias coisas positivas, inclusive a oportunidade de trabalho às mulheres que eram abandonadas como ela. Já estava providenciando uma nova poupança. Compraria algumas máquinas e abriria uma pequena oficina de consertos. 

    Teria tempo para cuidar do filho que só iria para uma escola quando ela tivesse condições de mandá-lo a uma particular. Já fizera uma lista com os nomes das principais senhoras para quem trabalhara. As madames pagavam quaisquer quantias por uma simples bainha em uma calça jeans. E, nós, mulheres, pensava com orgulho, nascemos para gerar e para gerir. 

    Somos perfeitas administradoras. Afinal, o que as mulheres querem e sempre quiseram em quaisquer civilizações? Um pouco de liberdade para que crie o que vier pela frente; não só filhos; mas arte sob qualquer forma, gerência e/ou direção de quaisquer negócios. Dêem-nos liberdade e alcançaremos quaisquer posições. 

    Clarinha Almeida, uma andorinha solitária?! Nunca! Andaria com seu bando milimetricamente coordenado. E seria aquela que puxa as companheiras à frente em um voo artístico embelezando os céus.

 
 

Edih Longo

É Linguista, dramaturga,

romancista, poeta, contista,

cronista e atriz teatral,

formada pela USP/SP.

Ganhou prêmios nestas

modalidades. Atualmente aposentada,

dedica-se a escrever e atuar.

 https://facebook.com/edih.longo

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