Prosa 2
A maldição da mansão
Há uma famosa maldição, para pessoas ricas que podem pagar por um lar maravilhoso: “Que os Pedreiros Nunca Saiam de Sua Casa!”
Beatrycze e Haskel formavam um casal em grande ascensão. Casaram-se em 2004. Depois de muito trabalho fizeram uma fortuna e resolveram construir o que seria sua casa definitiva.
Recém-formada em Economia, Beatrycze foi conseguindo uma grande clientela, auxiliada pelos contatos de seus pais, criando uma das mais famosas casas de gestão de fortunas de Varsóvia.
Por sua vez, Haskel se formara em Direito – área em que sua família detinha décadas de tradição. Criou um escritório de advocacia especializado em trazer negócios ao país. Em poucos anos já fizera uma boa clientela, além de fazer inúmeras viagens mundo afora.
O apartamento já estava se mostrando limitado para o casal e os três filhos, e a futura casa teria suficiente espaço para que nunca mais pensassem em mudanças. Foi comprado o melhor terreno em um dos mais exclusivos condomínios de Varsóvia – no topo de uma colina. Um arquiteto amigo da família foi chamado a fazer um projeto.
Um enorme átrio ocuparia a quarta parte dos dois andares da construção. No primeiro nível ficariam a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha, a lavanderia e os escritórios do casal. Acima estariam as suítes e uma sala de estar íntima. O nível térreo acomodaria uma enorme garagem e a adega. Em função do declive do terreno, a garagem era deslocada adiante em relação à casa, havendo um espaço acima, aproveitado para um magnífico terraço, com vista para quase todo o condomínio.
O terreno detinha espaço para um imenso jardim que cercaria toda a casa, com árvores a serem trazidas já adultas. A construção se iniciou em 2016. O casal não queria aborrecimentos, então contratou uma das mais experientes empreiteiras da região – especializada em residências desse porte, e liderada por um dos mais tradicionais engenheiros da cidade.
Quando o engenheiro dono da empreiteira ouviu a frase mágica: “Dinheiro não é problema, escolha os melhores materiais e faça a obra andar rapidamente”, mal pôde conter um grito de júbilo.
A solidez da obra foi completada com os melhores acabamentos: mármores, azulejos decorados, cerâmicas e fechaduras vieram das melhores procedências. As janelas escolhidas foram as mais apropriadas para a mais completa vedação contra as inclemências do tempo – aliadas ao melhor sistema de calefação.
Em dois anos a família, excitadíssima, se mudou. A alegria de trocar um envelhecido apartamento por uma casa imensa foi incontrolável nos primeiros dias, unida à amplidão dos espaços e à existência de cômodos individuais para as crianças e de espaços para escritórios.
Outro fator importante para a alegria do casal: a mansão era nova e resultante do projeto que havia sido acompanhado de perto. Foi feita uma grande festa – devidamente noticiada nas colunas sociais – para celebrar a nova casa, chamando os familiares, amigos e clientes, muitos vindos de outras cidades e até mesmo de outros países.
As árvores receberam incríveis elogios: jamais se vira um verdadeiro bosque formado em tão pouco tempo, com dezenas de espécies vindas de todo o país, cercadas por arbustos e canteiros de flores.
Todavia, já nas primeiras semanas a calefação deixou de funcionar. A empreiteira foi acionada e se empenhou em resolver o problema. Havia alguns pontos nos quais a pressão era inadequada para a chegada e distribuição do ar quente. Após demoradas pesquisas, diversos encanamentos tiveram que ser substituídos, devido a vazamentos e a entupimentos existentes. Com isso, diversos pisos e paredes tiveram que ser quebrados.
Instalou-se o caos: uma família vivendo em uma casa nova ao lado de pedreiros entrando e saindo a cada instante em cada cômodo, além da poeira e do barulho. A demora se deveu ao fato de o conserto envolver azulejos e cerâmicas – cuja quebra e substituição deve ser exata para não comprometer a beleza do conjunto. Tudo isso unido à falta de calefação começou a pôr os nervos do casal à prova.
Em dois meses e meio tudo se resolveu, prazo considerado normal pela empreiteira, mas com a aparência de uma eternidade para o casal – cada vez mais exausto. Nesse período, foi necessário contratar uma babá adicional para o cuidado dos meninos. O custo do reparo foi astronômico.
Ainda antes do reparo completo da calefação, o ar-condicionado do quarto do casal começou a apresentar um misterioso vazamento: em qualquer chuva, torrentes invadiam o compartimento. O primeiro evento encharcou o armário e a cama. Foi preciso lavar com urgência todas as roupas, das quais uma parte se perdeu graças à rápida e invisível ação do mofo. O colchão e o armário também se perderam. A empreiteira foi acionada, todavia, por estar assoberbada com os problemas da calefação contratou uma firma especializada.
O casal foi brindado com um novo período infernal, com uma outra firma devastando a suíte principal. A mansão parecia mais dos trabalhadores do que de seus donos. Beatrycze e Haskel, arrasados, passaram a dormir – espremidos e improvisadamente – em um dos quartos dos filhos, que, por sorte não reclamou de voltar a dividir um quarto com outro irmão.
O ar-condicionado parecia endiabrado. Após vários furos na parede – de onde saía o vazamento – nenhuma solução foi vislumbrada. Toda a tubulação foi substituída. Depois, a firma trocou a fiação – deixando o casal admirado, afinal um problema hidráulico não pareceria ter origem na parte elétrica. Relutantes, aceitaram a solução, que nada resolveu.
O próprio aparelho foi substituído por outro semelhante, usado na sala de estar. Nesse momento, ocorreu um incidente: a queda e consequente destruição da unidade que descia, danificando o corrimão e o caríssimo piso de madeira. Beatrycze e Haskel tiveram enorme dificuldade para conter os impropérios que iriam soltar sobre os responsáveis pelo incidente. Nova frente de conserto foi aberta na mansão, sendo chamada uma companhia especializada em escadas de madeira.
Infelizmente, nenhuma solução funcionou para conter o vazamento durante as chuvas em torno ao aparelho de ar-condicionado da suíte. Depois de muitos testes, foram examinar os demais aparelhos do andar superior. Todos recebiam a tubulação responsável pelo condensador mediante um furo pelo teto e apenas a suíte principal tinha tal furo na parede.
Com a segurança de terem chegado ao diagnóstico, resolveram fazer a instalação do aparelho problemático igual à dos demais aparelhos do andar superior. Todavia, ao se tentar esburacar a laje, houve um acidente: o encanamento de água quente foi perfurado.
Em caráter de emergência, esse dano infeliz foi reparado em uma semana, nos quais a casa ficou sem água quente – para desespero da família, que teve de abandonar o hábito do banho quente diário. Beatrycze, com os nervos em frangalhos, se viu impotente ante as queixas de seus pobres filhos.
Ao se retomar o furo da laje, foi a vez de se encontrar um conduíte elétrico, que entrou em curto-circuito após o contato da broca, surgindo um incêndio. Os Bombeiros controlaram o incêndio – que destruiu a suíte – e se viram na obrigação de revisar toda a casa. Beatrycze, desesperada, pediu ao marido, advogado, que intercedesse para evitar uma intervenção tão forte. Ao tentar conversar, Haskel foi infeliz, passando a impressão de que estaria oferecendo propina para encerrar a investigação. Ouviu por resposta:
— Deixe-me ver se eu entendi bem: no momento do fogo nós fomos chamados com urgência para resolver o problema e que agora somos dispensados com uns trocados para o café?
— Não é nada disso... não estou oferecendo nada... me expliquei mal...
A conversa foi encerrada. Os Bombeiros apresentaram um enorme conjunto de exigências, a serem implementadas em um mês.
O casal estava cada vez mais amedrontado. O ar-condicionado foi reparado, mas a suíte estava inabitável, com cheiro de fuligem. A confusão fora tamanha, com tanta gente diferente entrando e saindo da mansão, que se notou a falta das joias de Beatrycze. Haskel explodiu:
— Vou processar todo mundo, até achar esse maldito ladrão!
A esposa, impensadamente, respondeu de forma irônica:
— Explica para mim, como é que o ladrão vai aparecer e devolver as joias ao se processarem todos os que pisaram nesta casa?
Foi a vez de Haskel ser sarcástico:
— Você me pediu para resolver as coisas com os Bombeiros, a situação piorou, e agora a culpa é minha!
— Mas é lógico, você faz negócios de milhões e milhões de euros, e quando se trata da sua própria casa, é mais amador que a pastelaria da esquina!
Haskel se viu sob um ataque duplo, como o dos caranguejos, que atacam com suas duas pinças: a esposa ironizou a sua habilidade de advogado e os negócios que realizava. Surgiu uma primeira discussão séria do casal, com palavras fortes sendo trocadas; qualquer problema passou a ser visto como que de impossível solução – tal o terror que os dominava. Ele ampliou a frequência de suas viagens, que também passaram a ser mais demoradas. Beatrycze passou a enfrentar sozinha os problemas da casa.
Uma das exigências dos Bombeiros foi a substituição dos corrimões da casa, de madeira, por peças de aço – tais quais os utilizados em casas comerciais, como agências bancárias. A escadaria, de madeira jamais combinaria, então foi feita uma de mármore. Essa ordem trouxe ao casal um caráter trágico: apenas poucos dias antes havia sido terminado o conserto dessa escadaria, após o incidente da queda e do aparelho de ar-condicionado.
Às vésperas da vistoria, ocorreu um acidente mais sério: a tubulação de gás da cozinha apresentou um vazamento. Veio um novo incêndio, bem mais sério e que quase provocou ferimentos à cozinheira. Foi feita uma nova chamada urgente aos Bombeiros. Após o bem-sucedido combate ao fogo, a lista de exigências para liberar a mansão foi severamente ampliada. A tubulação de gás de toda a casa precisou ser substituída. Nova quebradeira em azulejos e em pisos foi necessária. A casa ficou durante três meses sem que a cozinha funcionasse, sendo necessário comprar comida pronta para todas as refeições.
Quando Haskel chegou de sua maior viagem, pelo Oriente Médio, e soube de tudo isso, ficou lívido. Censurou Beatrycze pela decisão de passar a comprar “comida de plástico”. Entretanto, tal qual costuma ocorrer em pessoas enfurecidas, as críticas não são acompanhadas de soluções alternativas. Ele chegou a acusá-la do pior possível a uma jovem mãe: de não cuidar da saúde dos filhos pequenos. Ela se retirou e chorou convulsivamente, como nunca em sua vida.
O empreiteiro foi chamado e Haskel, irritado, não poupou xingamentos. Ameaçou com processos suficientes para fechar a empresa se não consertasse tudo. Depois dessa discussão do casal e ainda durante as obras de conserto da tubulação de gás, Beatrycze foi com os filhos ao lar de seus pais e o marido ficou novamente ausente do país. Todavia, o casal se encontrava cada vez mais atemorizado.
Quando chegou o novo prazo, milagrosamente os Bombeiros aprovaram a reforma, ao constatar que todas as exigências haviam sido cumpridas. A família voltou à casa. Haskel presenteou Beatrycze com joias incríveis, tendo o cuidado de instalar um cofre.
Poucos dias depois, Beatrycze foi usar a toalete. Coitada, sendo uma moça formidável e vinda de uma família tão rica, ela definitivamente não merecia passar pela enorme humilhação à qual foi submetida. A descarga travou, não parando de soltar água. Com isso, foi expelido um fortíssimo jato, que jogou os excrementos na pobre coitada – além de sujar todo o cômodo, incluindo o teto. O grito aterrador que ela soltou foi ouvido em todo o condomínio.
Quis o destino poupá-la de maiores sofrimentos, pois nessa ocasião Haskel, além de não estar viajando estava em casa. Assim, correu, solícito, para confortar a pobre esposa – que já se encontrava em verdadeiro estado catatônico. Sem saber o motivo do que fez, ele teve o nobre e elegante gesto de abraçar a esposa, apesar de sujíssima e brincou, dizendo:
— Você sabe que sou obrigado a usar terno-e-gravata no meu trabalho. Eu detesto esta droga de uniforme, passo calor e me sinto sufocado pelo nó que sinto permanentemente no pescoço – tal qual escravo da moda.
Beatrycze chorava, mas conseguiu emitir um nervoso sorriso, ao qual Haskel se uniu. Sujos, abraçaram-se e até mesmo chegaram a se beijar. O casal comprovou que algumas desgraças desunem, mas que quando as desgraças surgem em quantidades industriais, podem servir para unir. As roupas que ambos usavam foram ao lixo.
O estado de medo que estava à volta deles passou a ser um terror contínuo presente em seus corações, dia e noite, impedindo-os de fazer qualquer coisa de útil. O casal começou a ter menor desempenho em suas atividades profissionais em função de uma casa tão problemática.
Os pais de Beatrycze não suportavam mais recebê-la e a agenda de Haskel não apresentava viagens à vista. A família se acomodou na garagem, tendo sido preciso comprar barracas e cobertores para abrigá-los, enquanto se fazia a troca de todas as descargas da casa, sendo preciso quebrar mais paredes e azulejos.
Neste momento, as colunas sociais começaram a relatar as desgraças da mansão. Amigos e clientes começaram a se afastar do outrora brilhante casal – liderados justamente por aqueles que haviam comparecido à festa de inauguração da mansão. Os familiares, por sua vez, começaram a evitar essa família, cujos infortúnios pareciam não ter fim.
Beatrycze ativou seu lado de gestora de fortunas, e fez uma conta elementar, concluindo que a mansão já custara mais do que o triplo das estimativas mais pessimistas que feitas pelo arquiteto e pelo engenheiro ao início dos trabalhos – sem incluir a perda de suas joias.
Aproximou-se o primeiro inverno rigoroso, um teste para a casa – aguardado com verdadeiro terror pelo casal. De início, as nevascas devastaram apenas o jardim. As flores morreram, as belíssimas árvores caíram com grande estrépito, trazendo danos ao terraço sobre a garagem.
O final da vegetação pareceu marcar uma etapa, o final de uma era para a mansão. Instaurou-se o começo do declínio definitivo e irreparável da casa, devidamente cercada por um deserto.
A neve se acumulou nos telhados. Apesar de serem inclinados e preparados a enfrentar tal evento, em vários pontos infelizmente, as telhas foram destruídas pelo peso ao qual foram submetidas. As lajes foram alagadas. A água é matreira: uma vez armazenada em quantidade, busca as frestas mais recônditas para escoar e se infiltrar.
Nova onda de destruição atacou a mansão. Armários foram inundados, com estragos irreparáveis nas madeiras. As roupas foram levadas a uma lavanderia para não serem perdidas. A mansão se tornou inabitável. O casal, aterrorizado, perdeu a paciência, iniciando momentos de nervosismo interminável. Médicos foram chamados, pedindo a internação de ambos. Todavia, nem Beatrycze nem Haskel seguiram essa orientação. Entretanto, perderam a guarda dos próprios filhos, entregues à adoção de parentes, todavia de forma separada.
Internamente, a mansão parecia ter resistido bem ao frio, menos um elemento: o isolamento das janelas, cujos batentes se contraíram, contorcendo todos os conjuntos.
O empreiteiro, visivelmente constrangido, já não sabia mais como responder. Ao dizer que para consertar as telhas e todos os batentes das janelas seria necessário um tempo considerável, Haskel, sem conseguir fixar o olhar em nada, disse que iria com a esposa a um hotel, e que a conta seria paga por ele. A concordância ao pedido foi feita de forma tão imediata e impensada que o casal deveria ter desconfiado.
De fato, poucos dias depois, os jornais de negócios do país noticiaram a fuga do engenheiro, tendo levado em dois caminhões os eletrodomésticos – os únicos bens que haviam sobrevivido às chuvas, e que jamais foram encontrados. Além disso, a empreiteira deixou de pagar os últimos salários dos funcionários e todas as taxas municipais, evidenciando que havia sido orquestrado um golpe com antecedência. Tais eventos protagonizaram a falência fraudulenta mais famosa da recente vida empresarial do país. Até agora a Interpol não localizou o fugitivo.
Beatrycze e Haskel ficaram tão aterrorizados com todos os problemas da casa e com a falência do maldito empreiteiro que nunca mais conseguiram dar conta de suas atividades. Perderam a razão e a fala. Vagam como fantasmas em torno da mansão – cada vez mais carcomida por todas as formas de destruição.
Roberto Minadeo
É Diretor de Cursos da ANE - Associação
Nacional de Escritores.