Prosa 1
A Casa que Chorava
Era maio, eu estava lá no chão da minha casa. Só conseguia ver da metade da parede para baixo, a cor era um verde claro, meio sujo, eu não sabia que cor era aquela. As paredes da casa não tinham mais cor, eram desbotadas e acinzentadas, tinha alguns buracos na parede e dava para ver o tijolo. Eu conseguia ver o rodapé de madeira, branco, sujo, e o piso de madeira tinha o assoalho todo solto, um colado e o outro solto, como um tabuleiro de xadrez. Não me recordo bem a minha idade, mas pelo tamanho das coisas a meu redor deveria ser por volta de 5 anos.
Estava lá me aventurando pelo chão, curiosa. Carregava um saquinho de pregos que achei escondido embaixo da escada. Me lembro como se fosse hoje. Colocava o prego em cada buraquinho que encontrava na parede e passando a mão encontrei algo gelado, que parecia um olho. Rapidamente encaixei um prego ali e continuei me arrastando pelo chão. Um pouquinho mais a frente tinha outro olhinho, daqueles que pareciam piscar para mim, e foi então que eu corri e tentei colocar mais um prego naquele buraquinho.
Um barulho forte como uma locomotiva começou a apitar alto e me chamou a atenção. Eu parei. Era a panela de pressão na cozinha. Voltei a olhar para as paredes da sala e com muito jeito comecei a colocar o último prego na tomada. Me lembro do grito da minha mãe dizendo um longo não. De repente, levei um tranco forte seguido de um choque que me jogou para longe.
Desacordada, retomei a fala depois de uns tapinhas na cara. Minha mãe, pálida, perguntou: o que você está fazendo? Eu não conseguia me lembrar, mas sabia que não era nada bom. O choque foi grande e a sensação de me sentir sozinha naquela casa aumentou. O medo fazia parte da minha infância e o perigo morava ali, dentro de mim, e na minha própria casa.
Eu sabia que existiam casas mais bonitas e que existiam vidas felizes, melhores, mas essa não era a minha história, não na minha casa, não na minha família.
Cresci em um lar desajustado. Sempre ouvi que o lar é o reflexo da nossa vida, onde estamos protegidos, mas não foi o que aconteceu comigo. O que nos faz acreditar que estamos a salvo em nosso ninho? Quem de nós nunca se sentiu sozinho em sua própria casa? Meu relato é sobre isso.
Minha casa era antiga e mau cuidada, tinha goteiras por todo lado, era fria e gelada como as minhas manhãs. Tinha marcas de violência na parede e trazia uma história de dor e sofrimento.
Assim me lembro do episódio do prego que coloquei na tomada e que me fez olhar para esta casa com sentimento de solidão, tristeza e abandono. Desde pequena vivi uma infância de medo e de insegurança.
Mais velha, já com uns 8 anos, não tinha coragem de convidar nenhum amigo para me visitar. Muitos foram os fatores para que a minha casa estivesse daquele jeito. Lembro como se fosse hoje, minha mãe reclamava todos os dias para o meu pai dos problemas daquela casa. Isso influenciava no relacionamento deles, na minha criação e em como aprendi a lidar com esta casa interior, que trago até hoje viva em minha memória.
Tantos anos se passaram e ainda posso ouvir o barulho da água escorrendo pelas paredes em dias de chuva. Minha casa chorava. E minha infância estava naufragada em lágrimas de tristeza.
Naquela época eu não entendia nada, era tudo nublado e confuso. Certo dia eu acordei e tudo parecia estar prestes a mudar. Minha mãe disse que íamos mudar de casa. Sentia um alívio. Era minha salvação. Mas para onde iríamos?
Minha mãe tinha se separado do meu pai e finalmente teríamos um lar. Ela dizia que tinha chegado a vez dela de ter uma casa. Mas havia algo que eu não compreendia. Meu pai estava furioso. Foi então que descobri que minha mãe havia vendido a casa que nós morávamos, que era dos meus avós paternos, onde ele nasceu, cresceu e se casou.
Com a separação eles foram obrigados a vender essa casa, que trazia lembranças de sua mãe quando ainda era viva. Ele enlouqueceu, mas já era tarde demais e a casa foi vendida. E nós três, eu, minha mãe e meu irmão, fomos para a casa nova.
Já não era mais uma casa, era um prédio. Mas o que era um prédio? Na minha cabeça de criança era uma casa em cima da outra e ao lado da outra. Naquela época não havia muitos prédios em São Paulo, era algo inovador, que causava curiosidade nas pessoas.
Uma mulher sozinha, separada e com dois filhos não era bem-vista em lugar algum, mas lá estávamos nós três, com as malas nas mãos e de olhos arregalados para aquele edifício gigantesco.
As paredes eram secas e pintadas, o chão espelhava, enfim, tínhamos um quarto para cada um e num piscar de olhos estávamos em um conto de fadas. Tudo tinha ficado para trás. A tristeza. A insegurança. As mágoas. A angústia.
Estávamos em um lugar novo, uma promessa de vida nova, a alegria era algo que eu nunca tinha sentido até então. E vinha misturada com a sensação de liberdade, prazer e conquista. Mas para os meus pais aquilo era só o começo de mais uma longa história, de brigas, disputa e poder.
E assim passamos dias e noites juntos em um lugar que era só nosso, parecia que ali estávamos protegidos e muito felizes. Mas essa alegria durou pouco e logo tivemos que entregar o apartamento.
A nova casa foi um presente dos meus avós maternos. Uma oportunidade de construir um lugar para chamar de nosso. E lá estávamos nós quatro novamente. Mais uma vez minha mãe abria as portas para meu pai. E eu, ainda muito jovem e sem entender todos aqueles movimentos, me sentia feliz por tê-lo de volta.
Infelizmente as nossas relações estavam todas desgastadas e foi então que a casa virou novamente palco de brigas e o desconforto voltou e nos acompanhou como uma sombra, um peso, uma sina.
Meu castelo de areia se desfez. Minha alma estava destruída. Eu nunca saberia o que significava a segurança de um lar.
O tempo varreu meus sonhos, meus anseios e minhas vontades. A ilusão de um mundo melhor parecia estar do outro lado do muro. Na escola, na casa dos meus amigos, no consultório médico, nos parques. Na minha casa quem morava era o perigo.
Cresci em um ambiente tóxico e abusivo. Aprendi que a casa era má e que suas paredes sofriam. Aos poucos, fui criando minha própria casa dentro da casa. Fugia para ela através da leitura, da escrita, contando histórias em silêncio.
Passei a perceber que eu sentia tudo o que aquela casa sentia. As lembranças estavam impregnadas nas paredes. Eu chorava e ria. E em cada porta que se abria, me sentia abraçada ou empurrada para fora. Mas havia janelas, através delas podia avistar um horizonte, a possibilidade de um recomeço, um novo olhar, um novo endereço, um novo piso e um teto novo.
Através da fé, compreendi que a verdadeira casa era um templo dentro de mim. Já não estava mais misturada. Bem no centro deste templo estava minha fortaleza. A segurança que eu tanto buscava. Superei meus medos e aprendi a olhar a vida com os olhos cheios de amor.
Revisitei muitos outros templos dentro de mim. Subi montanhas e percorri ruinas internas para descobrir que esta era a minha morada. A outra casa não passava de um lugar para onde eu tinha que voltar, mesmo quando não queria.
O que era céu virou terra e a terra virou céu. Sentimentos profundos vieram à tona para que fossem reconhecidos e transmutados. Ainda posso ouvir o barulho das lágrimas escorrendo pelas paredes, mas isso não faz mais parte da minha vida. Minha cura me apresentou minha missão. Troquei a tristeza pela alegria e agora transformo casas em lares para serem chamados de seu.
Como uma colcha de retalhos, venho alinhavando essas histórias, unindo cada ponta como um quebra cabeça. Muitas vezes eles estão misturados e não se unem. Nossa casa é assim, em todos os ambientes e em cada canto.
Você se dispõe a olhar e mexer e vai encontrando pedaços desses retalhos soltos que parecem não se encaixar em lugar nenhum. Quando você menos espera essa colcha vai ganhando forma e, sem que a gente perceba, tudo se encaixa perfeitamente. Cada vez mais sinto imensa felicidade em me abrir, para cada porta que se abre mergulho nas sombras e nas cortinas, limpo e retiro toda a bagunça e a desordem, vejo florescer, transformar e transmutar cada espaço que ali está.
Seguindo esse fluxo me encontrei neste trabalho e me identifiquei como uma terapeuta do lar. Estou atenta aos sinais do universo e agradeço todos os dias pelas histórias que tenho vivido.
Desvendar a alma da casa requer mergulhar profundamente naqueles que a habitam ou irão viver ali, naquele espaço sagrado.
Márcia Ferreira Trovo
É Personal Organizer
(Profissional da Organização), fundadora da Casa3, e há doze anos trabalha resgatando a casa e a vida das pessoas, por dentro e por fora, através da organização.